21/11/2010

a frágil subversão do dia dos mortos

Passada a Batalha de 2010, finalmente podemos retornar a outros assuntos.
Não que o engajamento deste blogue no tema das eleições tenha sido entediante, constrangedor ou inoportuno.
Pelo contrário, foi um momento vibrante e aguerrido na vida nacional, e o editor deste espaço se orgulha de ter cumprido a sua tarefa e de ter dado a sua modesta contribuição.
Aliás, publico um breve e tardio balanço da Batalha de 2010 
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Mas, retornando então a textos menos monotemáticos e corriqueiros, publico uma seleção de belos poemas que tratam de nada mais nada menos do que da morte.
Pois em 02 de novembro tivemos o Dia de Finados, o dia de reverenciar os mortos. Pretendia fazer um comentário sobre cada um dos poemas, mas em razão do envolvimento com a eleição e de viagens, deixo para uma próxima oportunidade.
Por ora, publico apenas os poemas e, abaixo, um breve texto acerca da relação com a morte e com a finitude nas sociedades ocidentais.

No mais:
Próxima vitória institucional da luta popular: outubro de 2014.
Até lá...

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a frágil subversão do dia dos mortos

Por mais laicas e dessacralizadas que estejam a se tornar as sociedades modernas, ao menos no Brasil e em países de extrema religiosidade o Dia de Finados ainda é um hábito enraizado, seja em ainda acolhedoras cidades do interior seja em centros mais áridos e urbanizados.

Para a desinformada e moldável geração atual, para os pretensos moderninhos de plantão e para os desiformados e moldáveis de todo tipo e de todos os tempos, o hábito de lembrar e vistar os seus mortos deve parecer uma bizarrice, um costume que as pessoas teriam herdado por inércia ou o resultado de alguma manipulação religiosa.

Mas o Dia de Finados reflete muito mais que uma celebração autômata e que uma pressão familiar, social ou religiosa. Carrega mais que um simbolismo religioso ou cultural. Carrega um momento metafísico, transcendente, ou ao menos um resquício de transcendência.

O Finados é momento de dialogar com o que talvez seja o mais essencial da condição humana: a finitude, a precariedade, a nossa condição de entes ou realidades que caminham, a cada minuto que passa, para o seu próprio fim. Mais: a nossa angustiante condição de viventes que têm plena consciência de sua finitude, de sua marcha para o fim.

E, mesmo se tratando apenas de um arremedo de transcendência, isso não é pouca coisa: afinal vivemos em sociedades que de tudo fazem para ocultar a morte, a precariedade e a fragilidade. No Ocidente produtivista - seja num presente capitalista ou num futuro socialista - não podemos demonstrar fraquezas, dúvidas, perplexidades.

É preciso, antes de mais nada, afirmar a vida e a força, celebrar o otimismo e a crença seja lá em que for. Óbvio que não se está aqui colocando em questão a bem aventurança de de uma vida gozada em sua plenitude e em sua riqueza, e ems ua liberdade e criatividade.

Mas sabemos que nas repressoras e medrosas, empobrecidas e obcecadas sociedades ocidentais, o que está por detrás dessa compulsória 'celebração' da vida e da ação incansável é apenas fazer com que nos comportemos como se fôssemos todos soldados de um ambicioso e incansável projeto de conquista e domínio do mundo.

Como se com as nossas incansáveis conquistas e agressões ao mundo e a nós próprios, nós pudéssemos exorcizar todo a incerteza, o mistério, os abismos e os perigos que nos rondam a cada instante - conquistas e agressões que, claro, servem em primeiro lugar a uma minoria privilegiada e astuta, mas nem por isso menos burra, pobre e medrosa em termos de percurso existencial..

Enfim, a pior coisa para os comandantes dos exércitos ocidentais é ter comandados que duvidem da legitimidade suas tarefas, que interroguem acerca do verdadeiro sentido de suas existências e de suas ações. Esse seria o primeiro passo para deserções, motins e, quiçá, revoluções.

Para os comandantes ocidentais, são válidos todos os instrumentos (mídias, psicologias, artes, filosofias e até mesmo religiões) para afastar os seus domesticados soldados de realidades cosntrangedoras como a morte, o fim, a doença, a dúvida, enfim, tudo que lembre às pessoas a solidão essencial de cada um no meio do Cosmos e do Caos.

Nesse sentido, o diálogo com a morte e com o obscuro, realizado no Dia de Finados e conservado pela religiosidade popular, é uma quebra, é uma subversão - mesmo que frágil - desse padrão distorcido e manipulador das crenças e celebrações da vida e das ações humanas.
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Fique o leitor, então, com essa seleção de singelos mas contundentes poemas sobre a morte, para a morte. São como cânticos a nos embalar nesse breve passeio do verbo poético pelo obscuro que atemoriza, confunde, mas também fascina e hipnotiza.

Mais ainda: para poetas e filósofos, como Rilke, Heidegger e Blanchot, o perecimento e o sentir-se perecendo é o que oferece a clareza essencial para melhor nos percebermos enquanto viventes, enquanto testemunhas fugazes deste inapreensível desvelamento das coisas e do tempo em volta de nós, e que chamamos de vida humana.

Para eles, é somente cuidando e cultivando  em nós essa percepção do perecimento é que podemos de fato apreender a existência em toda a sua intensidade e mistério, ao mesmo tempo em que apreendemos o ser com a devida reverência e solitude.

E fica para uma próxima ocasião um comentário acerca de cada um dos poemas.

breve e tardio balanço da Batalha de 2010

Acima, menciono brevemente a tarefa que cumprimos nesta que foi uma verdadeira Batalha Eleitoral.

Tarefa que não se esgotou, obviamente, no engajamento em uma campanha eleitoral. Agora é hora de fazer a disputa desse governo que, sabemos, de modo algum será um governo de esquerda, um governo efetivamente popular e transformador das estruturas de poder.

Sabemos que mais uma vez o PT fará um governo limitado, reformista, enfim, um governo de coalisão com a centro-direita - e em alguns casos com o que ela tem de pior, e que às vezes em nada se diferencia daquela direita raivosa que foi derrotada nas urnas.
Por isso, ao invés de ataques (em nada originais) e desencantos (também em nada originais) o que nos resta é a repetitiva, e às vezes entendiante, tarefa de manifestar apoio crítico a esse terceiro mandato do PT. Apoio crítico no sentido de fazer a disputa desse governo, no sentido de evitar que o PT e Dilma (e também Lula, claro) façam demasiadas concessões ao reformismo e à ordem estabelecida.

Dilma, Lula e o PT precisam desse contraponto, dessa oposição lúcida mais à esquerda, que somente pode ser fortalecida pelos movimentos sociais e populares autônomos, não cooptados, e por lideranças populares, artistas e intelectuais engajados de fato na construção da história de seu país e de seu povo.

E esse apoio crítico ou oposição lúcida precisaria de imediato se preocupar com pelo menos três problemas: a) fazer o governo promover uma maior mobilização popular b) promover um enfrentamento e uma transformação nas estruturas de comunicação do Brasil, tornando a mídia mais democrática, autônoma e com vínculo direto com a realidade popular e c) cobrar do governo um enfrentamento com a questão da corrupção, esclarecendo a fundo e punindo de fato, seja aliados seja membros do PT.
Claro que essas três questões devem ser melhor detalhadas, cito-as apenas de passagem, por parecerem fundamentais e urgentes. Elas estão na raiz mesma da consolidação do de um governo realmente popular no Brasil.

É preciso lembrar que os três governos do PT são o resulatdo das lutas populares; Lula, Dilma e o PT não caíram do céu, foram construídos ao longo de toda uma dura e combativa trajetória das lutas populares em nosso país.

E o presente e o futuro destas lutas populares não podem ser comprometidos com indecisões, contradições e conivências de ocasião. É a credibilidade e a continuidade dessa longa trajetória que está em jogo neste 3º mandato do PT.

Principalmente nesses episódios de denúncias de corrupção. Claro que não podemos embarcar nessas recorrentes e às vezes risíveis ondas de denuncismo, sabemos que elas têm um alto teor de golpismo, lacerdismo e moralismo hipócrita.

Mas isso não pode ser justificativa para que imprensa e sociedade fiquem sem explicações claras e convincentes da parte do governo do PT. Que se puna aqueles que relamente merecerem a punição por praticarem de fato a corrupção e, na outra ponta, quando se tratar de denuncismo irresponsável ou golpista, que sejam rigorosamente punidos os caluniadores, principalmente quando utlilizarem-se da imprensa para divulgarem suas artimanhas e mentiras.

Pois o governo do PT precisa, pode e deve perder ese constrangimento ou esse temor de barrar os execessos de determinados setores da imprensa, o governo não pode mais aceitar a chantagem de se confundir liberdade de imprensa com liberdade de calúnia, difamação e pressão escusa.

Assim, a sociedade e os setores sadios da imprensa serão atendidos no seu direito à transparência e ao respeito à coisa pública, e, de outro lado, a luta popular, da qual o PT ainda é o porta-voz, não perderá a sua credibilidade e a sua legitimidade.

01/11/2010

partida

antes de ir
apenas mais dois pontos
:
nesse universo de pontos
meus dois olhos em prantos
prontos para a despedida

morrer é apenas
a unificação de tantos pontos

vicente filho - para paul celan

rilke e o morrer verdadeiro

Agora se morre em 559 camas. De um modo industrial, obviamente. Com uma produção tão grande, a morte individual não é tão bem feita, mas isso também não importa. O que conta é a quantidade. Quem hoje ainda dá alguma coisa por uma morte bem acabada? Ninguém. Mesmo os ricos, que poderiam se permitir uma morte minuciosa,  começam a se tornar descuidados e indiferentes; o desejo de ter uma morte própria se torna cada vez mais raro. Mais um pouco e será tão raro quanto uma vida própria. Deus, está tudo aí. A pessoa chega, encontra uma vida pronta, e é só vesti-la. A pessoa quer embora ou é obrigada a tanto: bem, nenhum esforço: Eis vossa morte, senhor. As pessoas morrem do jeito que der; morrem a morte que cabe na doença que elas têm (pois desde que todas as doenças são conhecidas, também se sabe que os diferentes finais fatais cabem às doenças e não às pessoas; e o doente, por assim dizer, não tem nada a fazer).
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Quando penso em minha casa, onde agora não há mais ninguém, acho que no passado deve ter sido diferente. Outrora se sabia (ou talvez se suspeitasse) que se tinah amorte dentro de si da mesma amneira que o fruto tem os seus grãos. As crianaçs tinham uma morte pequena dentro de si, eos adultos uma grande. As mulheres a traziam no seio, e os homens no peito. Ela era uma posse e isso conferia à pessoa uma dingidade peculiar e um orgulho calado.
(rilke - os cadernos de malte laurids brigge)
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'Pois, perto da morte, não se vê mais a morte
e olha-se fixamente para fora
talvez com um grande olhar de animal'

'Ó, senhor, dai a cada um a sua morte
o morrer que seja verdadeiramente fruto desta vida
onde ele encontrou amor, sentido e aflição'
(rilke - fragmentos)

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se ao menos uma vez tudo se aquietasse
se se calassem o talvez e o mais ou menos
e o riso à minha volta...
se o barulho que fazem meus sentidos
não perturbasse mais minha vigília...
então, num pensamento multifário
poderia eu pensar-te até aos teus limites
e possuir-te (só o tempo de um sorriso)
e oferecer-te a vida inteira, como
um agradecimento
(rainer rilke, "livro de horas")

no seu septuagésimo quinto aniversário

no seu septuagésimo quinto aniversário
lutei com nada e nada valia a lida
amei a natureza e logo após a arte
aqueci as mãos ante o fogo da vida
tudo se afunda e estou como quem já parte


sobre a morte
a morte está sobre mim a sussurrar
não decifro tudo o que vem aos meus ouvidos
da estranha fala somente fico a par
de que não são palavras temidas

walter savage landor, poeta inglês do século  XIX

os vivos ouvem poucamente

os vivos ouvem poucamente. as plantas,
como o elemento aquático domina,
são dadas à conversa. a menor brisa abala
a urna de concórdia estremecida
que, assim, sensível, se derrama
e é solidão solícita.

os vivos não ouvem nada.
mas, havendo acedido a essa malícia
de experiência cândida,
os mortos deixam que o ouvido siga
o fluvial diálogo das plantas
umas com outras e todas com a brisa.
melhor ainda. quando, nas noites cálidas,
as plantas se sentem mais sozinhas,
os mortos brincam à imitação das águas
inventando palavras de consonâncias líquidas.

e esse amoroso cuidado de palavras
a urna de concórdia vegetal espevita
até que, a horas altas,
a noite, os mortos e as plantas
caiam no sono duma luz solícita.

fernando echevarría, em "sobre os mortos" -  portugal

ilha, luto

a domingos, companheiro atropelado pelo real

pater, eu tenho um mar até o peito
mas não me alço alto e forte

nada a dor

na tarde que neblina, brinda
e escorre cremes e cristais de melancolia

eu temo e amo a visão boquiaberta
a que me lava e voa em sonhos:

tu e tua urna sem porto
aí nesse mar maior
que esta ilha de migalhas

urna úmida, muda e balouçante
a vadear as areias e arestas desta terra
arrastada em ondas que voam, rugem
além da vitória ou da derrota
no seio da vertigem

e então reconto, desponto
de praia a ponta
de barra a mar
de campos a serra viçosa:
eu busco o esquife inesquecido
as memórias jamais perdidas
na fraturada memória da partida

e ja à porta do espanto
à meia fundura do mar
eu paro, eu espero
eu-parto: o olhar ofega
mas esse teu ômega afaga-o

então já não mais naufrago
a memória na melancolia
continuarei.
carregarei essas tardes como quem carrega teus
sapatos de afogado

ancoro-me em lágrimas doces e as mesclo
com neblinas, ondas, espumas, crinas
e gotejo esses imensos instantes
que ardem na tarde
num só num só num só
                                           poemar

e envio a esse teu
celeste deserto nublado:
inimaginável intangível
impossível imperecível
                                           pomar

deserto de pó, de mar
                                          pós-mar

pater?

roberto soares (ilha de guriri, es, inverno de 96)

homenagem

de costas para o mundo, para o pó
para o frágil redemoinho de nostalgias e sonhos
e de efêmeras representações
esta leve fábrica se levanta
só pelo milagre de haver vencido
o tempo e suas mais recônditas argúcias

alvaro mutis - colômbia

mineral

existe um homem cada mineral
e luta quando é chamado à vida
flui entre os quatro cantos do cristal...

também no limo, no lêvedo, e tudo
o mesmo homem, o vazio mudo
indiferente a prisão tão incontida

existe um homem cada mineral
mas estou só, perdendo-me amiúde
devolvo à morte a vida universal

carlos ernesto, em “flutuais” – viçosa, minas

mãe

mãe:
que desgraça na vida aconteceu,
que ficaste insensível e gelada?
que todo o teu perfil se endureceu
numa linha severa e desenhada?

como as estátuas, que são gente nossa
cansada de palavras e ternura,
assim tu me pareces no teu leito.
presença cinzelada em pedra dura,
que não tem coração dentro do peito.

chamo aos gritos por ti — não me respondes.
beijo-te as mãos e o rosto — sinto frio.
ou és outra, ou me enganas, ou te escondes
por detrás do terror deste vazio.

mãe:
abre os olhos ao menos, diz que sim!
diz que me vês ainda, que me queres.
que és a eterna mulher entre as mulheres.
que nem a morte te afastou de mim!

miguel torga, em 'diário IV' - portugal

como temer-te, morte?

como, morte, temer-te?
não estás aqui comigo, a trabalhar?
não te toco em meus olhos; não me dizes
que não sabes de nada, que és vazia,
inconsciente e pacífica? Não gozas,
comigo, tudo: glória, solidão,
amor, até tuas entranhas?
não me estás a sustentar,
morte, de pé, a vida?
não te levo e trago, cego,
como teu guia? Não repetes
com tua boca passiva
o que quero que digas? Não suportas,
escrava, a gentileza com que te obrigo?

juan ramón jiménez, em "la muerte"  - espanha
(tradução de José Bento)

horário do fim

morre-se nada
quando chega a vez

é só um solavanco
na estrada por onde já não vamos

morre-se tudo
quando não é o justo momento

e não é nunca
esse momento


mia couto, em "raiz de orvalho e outros poemas" - moçambique

vida sempre

entre a vida e a morte há apenas
o simples fenómeno
de uma subtil transformação. a morte
não é morte da vida.
amorte não é inação, inutilidade.
a morte é apenas a face obscura,
mínima, em gestação
de uma viagem que não cessa de ser. aventura
prolongada
desde o porão do tempo. projectando-se
nas naves inconcebíveis do futuro.

a morte não é morte da vida: apenas
novas formas de vida. nova
utilidade. outro papel a desepenhar
no palco velocíssimo do mundo. novo ser-se (comércio
do pó) e não se pertencer.
nova claridade, respiração, naufrágio
na maquina incomparável do universo.

casimiro de brito, em "solidão imperfeita" -  portugal