25/08/2009

poesia de portugal, ora pois

Depois da publicação, em julho, de alguns trechos de O senhor Ventura, obra em prosa do escritor português Miguel torga, temos neste agosto uma pequena amostra da poesia feita atualmente em Portugal, com poemas selecionados dos blogs portugueses Hospedaria Camões e Casa dos Poetas.

Esta primeira seleção é de poemas mais longos, que refletem uma certa vocação da literatura portuguesa para o abundante, o barroco, para a escrita derramada aos borbotões, sem constrangimentos de parecer obsoleta, sem preocupação de etiquetagens modernas ou pós-modernas.

Mas essa abundância verbal não significa um descolamento de temas atuais, vívidos, e nem impossibilita o presença de uma atmosfera ou tonalidade contemporânea. Atmosfera ora desamparada e melancólica, melancolia bem típica aliás da tão decantada ‘alma’ portuguesa (‘beleza destroçada’) ora despojada/prosaica (‘computador no lixo’, ‘ode ao vinil’) ou com tons de engajamento no coletivo, mas engajamento numa dimensão mais complexa, mais abrangente, como em ‘nós somos’.

Há que registrar ainda duas falas mais para o transcendente (‘crepúsculo’, ‘se o teu olho é simples...’), que certamente se inserem na tradição daquela poesia metafísica (mas de uma metafísica terrena, que se desvela no concreto) tão bem representada pela poesia de Rilke, brevemente desvelada no mês passado.

E por fim a a celebração de venturas/desventuras amorosas e existenciais - ‘duas vezes nada’, 'a secção dos congelados', ‘os amantes inadequados’ e o singelo-contundente ‘as prostitutas’. Aqui, outra infiltração brasileira nessa celebração portuguesa, a mineira Mariana Botelho, com a ardente-generosa entrega de seu ‘toma’.

Leia mais sobre os poetas de Portugal, aqui publicados, em Hospedaria Camões e Casa dos Poetas.

as prostitutas

Naquele tempo
elas desciam à vila, as prostitutas –
a única saída
exactíssima resposta para a nossa
angústia seminal acumulada.

Vinham de Vale da Porca, ou outra
terra assim pasmada.
Traziam na cabeça lenços garridos
na carteira de mão a triste história:
a sedução primária, a miséria espessa
mas jamais o vício mercenário.

Nas eiras recebiam nossas águas
de permeio plantados como reis.
Procuravam lisonjeiras acertar
seu êxtase fingido com o nosso.
Beijavam-nos, diziam: tão novinho!
Suportavam-nos insultos e arremessos.
Com mão experiente (mas não habituada)
guiavam-nos na bela, impreterível
urgente aprendizagem
concediam-nos crédito e carinho –

as tãos castas mulheres
as prostitutas.

a. m. pires cabral (macedo de cavaleiros - portugal)

toma

toma
esgota tua menina

até que não reste uma fibra
no ventre ardendo em brasa

no corpo a se apagar na treva

dois vaga lumes no pote
e o silêncio dos retratos –

bebe.

mariana botelho (minas - brasil)

o grito ecoa...

... mais forte a cada ano

Os trechos publicados abaixo fazem parte do material de divulgação e mobilização do 15º Grito dos Excluídos, cujo lema, em 2009, é “A força da transformação está na organização popular”. O Grito foi lançado em 1995, numa iniciativa da CNNB (leia-se Igreja Católica progressista) junto com os movimentos sociais, e é sempre realizado no 07 de setembro, nos mesmos horários e locais das comemorações do chamado Dia da Independência. Segundo os organizadores, essa é uma forma de chamar a atenção para a longa caminhada que o povo brasileiro tem pela frente, antes de poder se considerar realmente independente e soberano.

O texto e o tema deste ano demonstram que o Grito dos Excluídos não é um evento isolado, circunstancial, que ocorreria apenas por inércia, mas que é paciente e lucidamente construído no interior da chamada Igreja Progressista e junto com os movimentos sociais e as comunidades. Ou seja, mobilizações como essa mostram que amplos setores da Igreja Católica ainda estão comprometidos com a transformação das estruturas sociais e políticas e com as contradições deste mundo terreno, e não apenas com a evolução espiritual de indivíduos e sociedades.

A CNBB acertou em cheio ao eleger para este ano o tema da organização popular. Pois, na verdade, já passou a hora de se promover no país uma reorganização ou um resgate do movimento popular.
Sabemos que o movimento está cada dia mais anestesiado e esvaziado, e muito dessa apatia está na opção, ou necessidade tática, de ter que apoiar (ou ao menos não ameaçar) a estabilidade de um governo que tem claramente um projeto, ou pelo menos uma orientação, democrático-popular, mas que optou por se sustentar cada vez mais nos poderes instituídos, formais ou informais (Congresso, Judiciário, empresários etc) ao invés de se apoiar preferencialmente nas organizações populares e nos movimentos sociais.

Esse afastamento de um governo popular, em relação aos movimentos que o instituíram, torna difícil para esse mesmo governo implementar um projeto mais ousado, criativo e transformador, já que sempre encontrará resistências daquelas forças institucionais com os quais o governo se aliou - e isso independente do grau de corrupção, de desumanidade ou de descompromisso com a vida plena por parte dessas forças. Além disso, perde-se a oportunidade histórica de oferecer às camadas populares a possibilidade aprender a governar, de se co-responsabilizar pelos destinos de seu país, com todos os erros e acertos que um tal aprendizado implicaria.

E se as organizações e as lideranças não são convocadas para participar e se responsabilizar efetivamente pelo governo popular, e se não há uma renovação do movimento através da mobilização e sedução (promovida também pelo governo popular) de novas pessoas até então desligadas do movimento, a conseqüência é aquela apatia, esvaziamento e desorientação do movimento apontada no início. Desorientação que poderá até mesmo repercutir contra o próprio governo, quando se tornarem insustentáveis as pressões golpistas que costumam ser o último recurso de pessoas e forças sociais que nunca se conformam quando um povo começa e despertar e a aprender a dar um novo sentido, uma nova condução às instituições e poderes de Estado.

É nesse contexto que iniciativas como o Grito dos Excluídos são um sopro de alento para aqueles que crêem numa ação política mais espontânea, corajosa e calorosa.
Pois com essa institucionalização e engessamento dos movimentos sociais fica evidente que, neste momento histórico do Brasil, tem falhado o tripé Partido-Governo-Movimentos Sociais. Sabe-se que não tem havido a necessária autonomia entre do PT e dos Movimentos Sociais em relação ao Governo Popular, como também não tem havido a necessária integração entre o PT e os movimentos sociais.

Neste sentido, mais que benvindo é fundamental esse quarto ‘pé’, não somente para ajudar a sustentar o tripé da transformação, mas também para renovar, arejar, animar (no sentido de dar ‘anima’, alma) às pessoas e instâncias que promovem a transformação - e para questioná-las e enfrentá-las quando for o caso.


Veja também

o grito em movimento 1

o grito em movimento 2

20/08/2009

grito dos excluídos 2009

Reforçando a Campanha da Fraternidade com o tema “Vida em primeiro lugar” e lema “A força da transformação está na organização popular”, a Arquidiocese de Vitória, através do Fórum das Pastorais Sociais, e os movimentos sociais estão articulando o Grito dos Excluídos 2009.

O evento, que conta com o apoio e a participação de todas as comunidades, escolas e organizações sociais, ocorrerá no dia 7 de setembro, com concentração a partir das 8 horas, na Praça dos Namorados. Todos devem levar vassouras para varrer o chão da corrupção e lavar as escadarias do Tribunal de Contas, do Tribunal da Justiça e da Assembléia Legislativa.

Com base na ação de Jesus Cristo que, diante da exclusão, defende os fracos e o direito a uma vida digna para todo ser humano, o Grito condena as formas de exclusão e as causas que levam o povo a viver em condições de vida precárias, muitas vezes sem perspectiva de futuro; denuncia a política econômica que privilegia o capital financeiro em detrimento dos direitos sociais básicos; propõe alternativas que tragam esperança aos excluídos e perspectivas de vida para as comunidades locais; promove a pluralidade e igualdade de direitos, bem como o respeito nas relações de gênero, raça e etnia e, também, pretende multiplicar as assembléias populares para discutir a organização social a partir do município, fortalecendo o poder popular.

“Ao invés de irmos ver e aplaudir tanques, canhões, metralhadoras, fuzis e outras armas que ferem e matam, vamos levar para a rua nossa indignação, nossa fé, nossa coragem, nosso compromisso, nossa alegria e nossa vontade de ver a vida sendo gerada e defendida. Vamos levar nosso grito, o grito de centenas, de milhares, de milhões de brasileiros que amam a vida acima de tudo e creem que um outro Estado é possível”, convida o coordenador de pastoral da Arquidiocese, padre Kelder Brandão.

“Vida em primeiro lugar, a força da transformação está na organização popular”

7 de setembro: vamos gritar por justiça e paz
O ano de 2009 vem sendo de muitas alegrias para a Igreja de Vitória. Os trabalhos e articulações pastorais em nossa Arquidiocese têm sido intensos. A cada dia, novas demandas e desafios surgem e necessitam de respostas.

No primeiro semestre foram muitas as realizações. Destacamos a Abertura da Campanha da Fraternidade, que transformou o Centro de Vitória num grande espaço celebrativo, com um evento profético. Um outro grande feito foi o 9º Encontro Estadual de CEB’s, que, à luz do tema “Ecologia e Missão”, reuniu centenas de pessoas para refletirem como a Igreja deve se comprometer diante de um tema tão atual e relevante.

“Vários foram os ‘gritos’ que surgiram antes, durante e depois desses eventos”, afirma Padre Kelder Brandão. E constata: “Anunciamos, denunciamos e incomodamos. Fomos cristãos, somos cristãos!”.
Vamos na fé, orando e lutando.

computador no lixo

eis um computador
no lixo. E todavia
o crânio de lata teve memória dentro
– gigabytes dela! –
fez as quatro operações
aceitou versos
no seu imaculado
vazio virtual.

agora já não soma
nem subtrai
nem geme poemas, nem sublinha
erros de ortografia.
os pingos de solda, precários
neurónios de metal
perderam a memória.

já que te antecipaste
companheiro
diz-me como é não funcionar.

e se a ferrugem dói.

a. m. pires cabral (macedo de cavaleiros - portugal)

ode ao vinil

uma agulha suja
por muitos acordes
suicidas enche-me
de catástrofes
entre o sentido
e a dissimulação
do seu destino

lá fora dançam impessoais
as personagens-fantasma
da poética mutilação
do eterno retorno
que lá dentro dança
fora de si

espero-me em silêncio
tal anjo perdido
poeticamente distorcido
pela palavra

espero-te ao espelho quebrado
sem nada para te dar
entre gemidos agudos e graves
na camisa de sete forças
da palavra

A. Dasilva O. (portugal)

a secção dos congelados

truncadas, indefinidas, passam
na memória como filmes mudos
pequenas histórias de amor
carnal. os grandes caudais da noite
sempre desaguam na tarde salobra
e rasa: janeiro amolece a tinta
das paredes, levamos à rua uma cara
mais fechada, e depois, na secção
dos congelados, não sabemos distinguir
o que sentimos além do frio que represa
as coisas todas: caminhamos sós

num privado bosque, convocamos
sombras que foram perdendo o nome
sinais que não transportam já
um sentido automático de desejo
ou sofrimento. e contudo, à revelia
das certezas que não quiséramos ter
acabamos sempre por tornar
às mesmas ruas, à noite insone
e imensa, onde nos dói descobrir
na companhia dos outros

o quanto nos reclama a solidão.

rui pires cabral (macedo de cavaleiros - portugal)

os amantes inadequados

Os meus amantes nunca
foram belos
magros, de veias grossas
esculpidos em osso
dramáticos, ternamente trágicos
até ao sorriso.

Os meus amantes eram difíceis
resistiam de modo selvagem
para logo se entregarem
resignados e impossíveis
com a altivez domesticada
a cabeça em baixo
olhando o meu sexo
destruídos pelo desejo
mais poderoso que o espírito.
Tristes.

Nenhum conquistou
os meus demônios
abriu as minha folhagem débil
e entrou
para não sair.

Nenhum me fez fanática
do seu sexo
me desviou a luxúria
para o centro da sua boca
concentrou a surpresa
nos seus passos arrastados
o prazer, no som
da sua voz categórica
na gravidez dos seus olhos.

Nenhum me fez habituar-me aos seus costumes
me criou a necessidade de o necessitar
e por fim se ofereceu a ministrar-me
a dose de si mesmo que
me faria depender-lhe, nem
tampouco me instalou
um tumor benigno
no útero.

E agora tudo é diferente
tudo é diferente.
E já não estou
Só.

Eva Vaz (Espanha)
tradução de Tiago Nené

duas vezes nada

"é assim, amiga. encontramo-nos
quando calha nos bares de antigamente
deixando que sobre o tampo azul
das mesas volte a pousar
um baço cemitério de garrafas.

constatamos o pior, os seus aspectos.
corpos e livros que foram ficando
por ler na voracidade da noite de Lisboa.
de facto, crescemos em alcoolémia
acordamos tarde, em pânico
e perdemos os dias e os dentes
com uma espécie de resignação.
não temos, ao que parece, serventia.

sorrimos um pouco, ao terceiro
gin, como quem renasce para a morte
seus gestos de ternura ou de exuberância.
talvez tenhamos calculado mal
o ângulo da queda, esta vitória
sem nobreza dos venenos todos.

mas agora é tarde. Tudo fechou
para nós, para sempre. O amor
o desejo, até o onanismo da destruição.
antes de procurares a esmola
do último táxi, fica esta imagem
parada, a desvanecer-se
no frio mais frio da memória:

não dois corpos sentados a trocarem
medo, cigarros e palavras póstumas
mas duas vezes nada, ninguém
o silêncio da noite destronando
as cadeiras onde por razão nenhuma
nos sentámos. Os anos, amiga, passaram."

manuel de freitas (vale de santarém - portugal)

17/08/2009

nós somos

Como uma pequena lâmpada subsiste
e marcha no vento, nestes dias
na vereda das noites, sob as pálpebras do tempo.

Caminhamos, um país sussurra
dificilmente nas calçadas, nos quartos
um país puro existe, homens escuros
uma sede que arfa, uma cor que desponta no muro
uma terra existe nesta terra
nós somos, existimos.

Como uma pequena gota às vezes no vazio
como alguém só no mar, caminhando esquecidos
na miséria dos dias, nos degraus desconjuntados
subsiste uma palavra, uma sílaba de vento
uma pálida lâmpada ao fundo do corredor
uma frescura de nada, nos cabelos nos olhos
uma voz num portal e a manhã é de sol
nós somos, existimos.

Uma pequena ponte, uma lâmpada, um punho
uma carta que segue, um bom dia que chega
hoje, amanhã, ainda, a vida continua
no silêncio, nas ruas, nos quartos, dia a dia
nas mãos que se dão, nos punhos torturados
nas frontes que persistem
nós somos
existimos.

António Ramos Rosa (Faro - Portugal)

beleza destroçada

gostava dessa espécie de beleza
que podemos surpreender a cada passo,
desvelada pelo acaso numa esquina
de arrebalde; a beleza de uma casa devoluta
que foi toda a infância de alguém,
com visitas ao domingo e tardes no quintal
depois da escola; a beleza crepuscular
de alguns rostos num retrato de família
a preto e branco, ou a de certos hotéis
que conheceram há muito os seus dias de fulgor
e foram perdendo estrelas; a beleza condenada
que nos toma de repente, como um verso
ou o desejo, como um copo que se parte
e dispersa no soalho a frágil luz de um instante.
gostava de tudo isso que o deixava muito a sós
consigo mesmo, essa espécie de beleza arruinada

onde a vida encontra o espelho mais fiel.

rui pires cabral (macedo de cavaleiros - portugal)

se o teu olho é simples...

...todo o teu corpo será luminoso
Começa por atentar ao que se passa entre a urze e as abelhas
à doce árvore entre a terra e o céu.
Sobe às alturas das pedras nuas,
estão difíceis estes modernos tempos para a contemplação,
na rarefacção dos lugares teofânicos.
Toma nos lugares mais baixos a beleza
de uma azeitona no silêncio do meio-dia estival.
Contemplações insignificantes
contemplações mais magnificentes.
Depois deves numerá-las: a cerimónia.
Para que germinem no teu vaso de ouro
e sobre elas desça o orvalho e o perfume dos cedros.
adelino ínsua (porto- portugal)

crepúsculo

a oliveira cresce de encontro ao céu
com a luz dourada entre os ramos.
há um perfume de rosas murchas
o som do mar lá muito ao longe.
calam-se por fim os ecos, as coisas.

todos os caminhos levam à noite
à sua cilada de estrelas e penumbra.

josé mário silva