07/07/2009

dança de outono



os diuturnos duros troncos
aspiram a adormecer
ao menos mínimo sono
no veludoso dourado
leito de folhas filhas

texto e fotografia: roberto soares

dança de inverno




num ninho
de nuvens
náufragos
navios
rodopiam
sem norte
à sorte
de volta ao vasto
útero da morte


texto e fotografia: roberto soares

06/07/2009

silêncios e desvelos I

Os cinco poemas de Cecília Meireles, abaixo publicados, somente vieram a público em uma edição póstuma, “Cânticos”, publicada em 1982, pela Editora Moderna.
São 26 peças admiravelmente singelas, com um quê de aforismos. Na verdade, numa primeira leitura é como se não passassem de fórmulas sobre o bem viver, vazadas numa atmosfera de despojamento - no melhor estilo dessas supostas sabedorias orientais, oferecidas aos montes em livrarias, seitas e sites, como remédios existenciais milagrosos, eivados de lições sobre renúncia e autoconhecimento, estimulantes de desapego às ilusões e de indiferença às contradições deste mundo terreno.

Mas esse aparente esquematismo dos poemas é facilmente ultrapassado numa leitura minimamente cuidadosa. Aí, sim, percebe-se que há neles uma certa atmosfera filosófica, ou melhor, de maturidade existencial, que faz o leitor, mais do que refletir, sentir que se tratam de impressões realmente amadurecidas, de uma fala que reflete de fato a vivência de alguém, que se trata de um dizer verdadeiro, longa e pacientemente produzido no interior, e não apenas reproduzido do exterior.

Aliás, a esse respeito, leia o texto acerca da poesia de Rilke, no qual são apontadas algumas aproximação entre Cecília e o poeta alemão.
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Claro que essa sugestão de afinidade entre os dois poetas não tem a presunçosa pretensão de inventar filiações e referências para a poesia de Cecília Meireles. Apenas situá-la num plano diferente, realçar a atmosfera meio filosófica de seus poemas. Pela maior parte da poesia de Cecília perpassa uma discreto diálogo com o silêncio e a densa presença das coisas, diálogo feito de delicadeza e nostalgia - como se sua poesia murmurasse uma secreta saudade e lamento por aquele perecimento das coisas e de nós próprios no meio das coisas e do tempo.
Essa talvez a grande diferença entre a poetisa brasileira e o poeta alemão. Rilke é mais denso, trágico, a sua fala é mais carregada de perplexidades e interrogações. Cecília é mais singela, menos metafísica e mais terrena, menos discursiva e mais ‘retratista’ (‘Retrato natural’, uma de suas obras) das coisas. Mas, sem querer entrar em sutis e profundas considerações acerca daquilo que gestou a obra de um e de outra, vale apenas lembrar que o mundo de Rilke é outro, a história vivenciada pelo poeta alemão é bem diferente daquela vivida pela poeta brasileira - estavam cercados por coisas e histórias diferentes.

02/07/2009

cântico I

Não queiras ter Pátria
Não dividas a Terra
Não dividas o Céu.
Não arranques pedaços ao mar.
Não queiras ter.
Nasce bem alto,
que as coisas todas serão tuas.
Que alcançarás todos os horizontes.
Que o teu olhar, estando em toda parte
te ponha em tudo
como Deus.
cecília meireles

leia também o anarquismo e cecília

cântico XII

Não fales as palavras dos homens.
Palavras com vida humana.
Que nascem , que crescem, que morrem.
Faze a tua palavra perfeita.
Dize somente coisas eternas
Vive em todos os tempos
Pela tua voz .
Sê o que o ouvido nunca esquece.
Repete-te para sempre.
Em todos os corações.
Em todos os mundos.
cecília meireles

cântico XIX

Não tem mais lar o que mora em tudo.
Não há mais dádivas
para o que não tem mãos.
Não há mundos nem caminhos
para o que é maior que os caminhos e os mundos.
Não há mais nada além de ti.
Porque te dispersaste...
Circulas em todas as vidas
pairas sobre todas as coisas
e todos te sentem
sentem-te como a si mesmos
e não sabem falar de ti.
cecília meireles

cântico XX

Não digas que és dono.
Sempre que disseres
Roubas-te a ti mesmo.
Tu, que és senhor de tudo...
Deixa os escravos rugirem
querendo.
Inutiliza o gesto possuidor das mãos.
Sê a árvore que floresce
que frutifica
e se dispersa no chão.
Deixa os famintos despojarem-te.
Nos teus ramos serenos
Há florações eternas
E todas as bocas se fartarão.
cecília meireles

cântico XXV

Sê o que renuncia
altamente:
sem tristeza da tua renúncia!
Sem orgulho da tua renúncia!
Abre a tua alma nas tuas mãos
e abre as tuas mãos sobre o infinito.
E não deixes ficar de ti
nem esse último gesto!
cecília meireles

sugestão

sede assim - qualquer coisa
serena isenta, fiel

flor que se cumpre
sem pergunta

onda que se esforça
por exercício desinteressado

lua que envolve igualmente
os noivos abraçados
e os soldados já frios

também com este ar da noite:
sussurrante de silêncios
cheio de nascimentos e pétalas

igual à pedra detida
sustentando seu demorado destino
e à nuvem, leve e bela
vivendo de nunca chegar a ser.

à cigarra, queimando-se em música
ao camelo que mastiga sua longa solidão
ao pássaro que procura o fim do mundo
ao boi que vai com inocência para a morte

sede assim qualquer coisa
serena, isenta, fiel.

não como o resto dos homens.
cecília meireles

silêncios e desvelos II


Nos ‘Cânticos’, publicados acima, vemos confirmar-se uma certa afinidade de Cecília Meireles com o poeta alemão Rainer Rilke, que tem alguns de seus poemas publicados abaixo. Ambos são poetas de coisas, poetas que reverenciam o mundo que nos cerca, na sua simples e ao mesmo tempo enigmática aparição: paisagens, casas, cidades, céus, árvores, nuvens, o próprio tempo. Sabe-se que Rilke desenvolvia, principalmente através de suas cartas, quase que uma estética e uma metafísica para explicar sua própria criação poética. Para ele, escrever era uma forma de buscar aquilo que chamava de ‘o espaço interior do mundo’. Escrever seria uma decorrência do cuidado que deveríamos dedicar às coisas, era uma forma de retratar com palavras o ‘indizível’ que há na simples presença dos entes.

Para Rilke, seríamos os “os mais perecíveis entre os perecíveis” de todos os entes, ou seja, os únicos a tomar consciência não só de nossa finitude e precariedade mas também da finitude e precariedade de todos os entes, de todas as coisas que nos cercam. Para Rilke, então, deveríamos existir no mundo como viventes perplexos e admirados, a testemunhar acerca da queda e da precariedade de todas as coisas. E escrever seria uma forma de trazer para o mundo um pouco desse cuidado para com o perecimento das coisas e de nós próprios. Na verdade, escrever seria dar um duplo testemunho, pois é através da escritura que se realizam a delicadeza e o silêncio que existem no perecimento e na finitude das coisas e de nós próprios.

Ao reverenciar e registrar a precariedade, aquele que escreve traz para o ser o que ainda não existe, acrescenta entes ao ser, dá vida ao indizível que há no ser e nos entes, e isso não para evitar o perecimento ou para deixar uma espécie de memória nobre daquilo que se vai, ou qualquer coisa do tipo – escrever seria algo mais profundo, algo mais ôntico e cósmico, e ao mesmo tempo mais inútil, ou menos ‘útil’, é simplesmente dar voz àquilo que não fala, pensa ou sente, mas que no seu silêncio está tão ou mais presente do que ao ser do que nós.

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Rilke é de fato um dos representantes da tradição da poesia filosófica ou metafísica alemã. Aliás, percebe-se como a poesia e o pensamento de Rilke ecoam a filosofia de Heidegger - mas tendo escrito sua obra antes do filósofo alemão. Em sua filosofia Heidegger irá apresentar conceitos como o cuidado e o desvelamento que devemos ter em relação ao ser, a preocupação em resgatar o sentido de ser que se manifesta na aparição das coisas; enfim, naquilo que interessa aqui, há a mesma preocupação, o mesmo desvelo que há em Rilke com a aparição e desaparição das coisas.

Em ambos há também o cuidado em não permitir que sejamos demasiadamente envolvidos pela tecnologia modernosa, com a consequente instrumentalização e padronização da existência. Heidegger fala da existência autêntica em oposição a uma existência inautêntica, a uma existência padronizada, fabricada por uma modernidade na qual o que alimenta a engrenagem é a necessidade de que o indivíduo fale o que todos falam, coma o que todos comam, pense o que todos pensam, sinta o que todos sintam - aliás, uma engrenagem que é extremamente competente em fazer com que sintamos medo e desconforto ao não pensarmos e sentirmos uns iguais aos outros.

Roberto Soares

01/07/2009

rilke - fragmentos

"Não existe uma coisa na qual eu não me encontre
Não é só minha voz que canta: tudo ressoa."

"Aqui, entre aqueles que passam, sê, no reino do declínio
Sê o cristal que ressoa e no fragor da ressonância já se quebrou."

"Um ser sem invólucro, aberto à dor.
Atormentado pela luz, abalado por cada som."

"Mas quando, em qual de todas vidas
Somos nós, enfim, seres que se abrem para acolher?"

rainer rilke (extraido de 'O espaço literário', de Maurice Blanchot, ed. Rocco, 1987)

através

Através de todos os seres para o único espaço:
espaço interior do mundo. Silenciosamente voam as aves
através de nós. Ó eu que quer crescer
olho para fora e em em mim que a árvore cresce!
rainer rilke (extraido de 'O espaço literário', de Maurice Blanchot, ed. Rocco, 1987)

quem quer que sejas

quem quer que sejas: deixa tua alcova
da qual já sabes tudo que desejas;
teu lar na tarde, longe, se renova
quem quer que sejas

com teus olhos exaustos, que ainda a custo
entre os gastos umbrais logram passar
ergues inteira a sombra dum arbusto
posto ante o céu - esguio, singular

e tens já pronto o mundo; estranho assim
como palavra que amadurecesse
no silêncio, e que teu olhar esquece
quando lhe captas o sentido, enfim...

rainer rilke (O livro de horas, ed. Civilização Brasileira, 1994)

legado

navegar o centímetro do gesto
no mar infinito do verbo

é teu o que te for dado:
o olhar cansado preso à teia
o medo já domado da fera
o beijo.

tudo o mais
entrega.
mariana botelho

Também vão nesse mês dois poemas de Mariana Botelho. O seu poema ‘Legado’ parece dialogar com os ‘Canticos’ de Cecília Meireles, com a diferença de ter sido construído numa fala um pouco mais enxuta e com uma imagética mais simbólica, ou mais cerrada. Já ‘Paraíso’ remete tanto a Cecília quanto a Rilke, com sua prece feita às coisas e à solitude do poeta em meio ao fluxo do tempo; mas, claro, com uma fala toda própria de Mariana Botelho, ou uma fala mais apropriada para estes tempos de urgência.

Aliás, a atração que a poética de Mariana exerce parece estar um pouco ligada à essa faculdade de explorar e explicitar veios esquecidos veios da poesia; mesmo em tempos de falas e vivências fragmentadas, atomizadas, bombardeadas por signos e velocidades, a sua poesia se detém em essências, silêncios, solidões; enfim, a sua poesia tem não apenas o dom, mas encontra também o tom certo, o tom próprio da contemporaneidade, para trazer para este tempo de urgências aquelas conversas diretas e delicadas com o ser das coisas, apontadas nos textos acima, quando falei de Rilke e Cecília.

paraíso

aqui temos todas
as horas do
dia

prata escorre dos
lajedos
depois da
chuva

lágrimas engrossam o
canto dos pássaros o
uivo dos
cães

estar só
é dádiva
mariana botelho

minha cidade: padre paraíso, vale do jequitinhonha, minas - aqui somos quase sertão

anarquismo e cecília

Ao lado do registro da vertente filosófico-melancólica da poesia de Cecília Meireles, abordada em silêncios e desvelos II, os ‘Cânticos’ remetem-nos também a uma certa postura libertária e anarquista. Há neles um caráter de despojamento e de afirmação da liberdade em relação a qualquer ordem estabelecida, uma certa certa negação dos valores dos quais essa mesma ordem se utiliza para capturar as liberdades e espontaneidades que somos todos nós, ou que deveríamos ser, e no lugar da negação os poemas afirmam a atenção, o cuidado que devemos conosco mesmos, para que exercitemos mais o nosso desvelo para com as para com as coisas que estão aí, na sua gratuidade, leveza e densidade.

E, nesse ponto, podemos também tranquilamente retornar ao vínculo entre a poesia de Cecília e as cosmovisões das civilizações do Oriente, mas com aquilo que essas cosmovisões têm de consistente e de milenar, e não com os seus simulacros e fragmentos - tal como apontado em silêncios e desvelos I . Pois se há algo que a maioria dessas chamadas sabedorias propõem, é exatamente a necessidade de o indivíduo se despojar de seus enlaces excessivos com o transitório, o ruidoso, o repetitivo, o fácil e o fenomenal, que nos distraem do essencial e do sentido das coisas e de nós próprios no meio das coisas.
Aliás, parece que também haveria algo a dizer acerca da afinidade entre movimento libertário e as cosmovisões do Oriente, mas numa outra ocasião, num texto mais específico.

De qualquer forma, não se pretende aqui vincular Cecília Meireles e movimento anarquista, apenas registrar que são em poemas como esses que se pode perceber com mais nitidez a incontestável ponte que existe entre a arte e as propostas libertárias. Tanto quanto a autêntica arte, a visão libertária e anarquista é feita de riscos, de disposição criadora, de confiança no potencial fraterno dos indivíduos, de ênfase na celebração da vida e do mundo, ao invés da ênfase na conquista, na autoridade e no poder; e tanto a arte quanto a posição libertária carregam consigo a necessária lucidez e sensibilidade para perceber que, enquanto existentes, somos apenas precários mas fascinantes instantes no fabuloso mistério do tempo e do cosmos.
Essa afinidade entre arte e anarquismo com certeza que os cânticos de Cecília nos mostram - dentre tantos milhares de poemas de milhares de poetas. E como dito acima, os 'Cânticos' refletem maturidade existencial, apresentam-se de fato como o dizer verdadeiro de alguém. Aliás, vale uma consulta tanto ao conceito de dizer verdadeiro quanto ao conceito de parresiasta, presentes por exemplo no pensamento do filósofo Foucault, e difundidos entre alguns expoentes e militantes do anarquismo. Fica para uma outra oportunidade uma abordagem mais demorada acerca das relações do dizer verdadeiro da arte e dos anarquistas.
Leia, entre outros, o cântico I

o senhor ventura

Neste mês Desvelar apresenta um pouco de literatura de Portugal, com trechos de ‘O Senhor Ventura", do escritor Miguel Torga (1907-1995), publicado em 1943. O próprio título dá o tom da obra. Pois é de fato um romance - ou uma novela - ágil, eivado de ação, aventuras e desventuras, principalmente desventuras. Pois é preciso lembrar que o vocábulo ventura não significa propriamente alegrias, gozos, sucessos. Significa apenas o que deve vir, seja bom ou ruim, o acaso, o destino. E o destino do Senhor Ventura é atribulado, aguerrido, indômito e por fim melancólico.
A narrativa á vazada numa certa atmosfera de melancolia e saudade, como não poderia deixar de ser em se tratando de típica literatura portuguesa. Mas no Senhor Ventura há mais de Portugal, além da nostalgia. Esse irrequieto e sofrido personagem de Torga é de certa forma uma tentativa de resgate poético do grandioso destino de Portugal, à época das Grandes Viagens. Como aliás já sugere o misterioso narrador oculto, logo na abertura do livro.
Desta feita, Desvelar publica apenas trechos da primeira parte do livro, a parte mais recheada de ação, empreendimentos e viagens. Fica para uma outra oportunidade amostras da vida amorosa e do desolado declínio do Senhor Ventura. Como também fica para outra ocasião um comentário menos apressado acerca dessa comovente história do português Miguel Torga.
No Brasil, a obra foi publicada pela Nova Fronteira, em 1999.
"Em tardes assim como as de hoje, cansado de esperar não sei por que milagre, desanimado diante do mapa do mundo que da parede me desafia desde a meninice, começo a pensar no Senhor Ventura. Na sua evocação mitigo durante algumas horas a dor que vai dando cabo de mim. Não me resigno à idéia de ter vindo à luz neste tempo e numa terra durante séculos inquieta de saber e descobrir, e depois tragicamente adormecida para tudo que não seja olhar-se e resignar-se". página 11
“O que essa temeridade foi, não cabe aqui. Só mesmo um homem de carcaça de ferro e coração com pelos é que era capaz de fazer chegar àqueles confins os duzentos carros do contrato. Primeiro, a travessia da China, por caminhos onde Deus Nosso Senhor nunca passou; depois, o deserto imenso, escaldante, a secar a água, a gasolina e o próprio sangue de quem incautamente se lhe abandonava.
- Vamos!
E uma rajada de vontade atravessava a caravana inteira.
Pontes improvisadas sobre abismos, combates à carabina com salteadores de estradas, impossíveis de toda a natureza, nas ordens do senhor Ventura eram brincadeiras de criança.
- E valerá a pena a gente arriscar-se tanto? perguntou, ao fim dum dia medonho, o Pereira.” página 37

“Estava porém escrito que aquele negro negócio não podia frutificar e que o pouco tempo que duraria tinha de doer muito ao verdadeiro dono. Desígnios complicados lá do alto, que o alentejano só entendeu quando se encontrou de coração a sangrar pela primeira vez.
Certo dia, um bando de soldados do exército rebelde, sem armas e sem dinheiro para as comprar ao português, resolveu tomá-las à força. O senhor Ventura foi avisado por um traidor, ao entardecer.
Era caso para pensar três vezes. Mas o do Alentejo nem se comoveu.” página 48

“O combate começou então, duro como a decisão do Senhor Ventura. E tanto ele, do Alentejo, como o Pereira, do Minho, como os mercenários, de nenhuma terra, parecia que estavam a defender a pátria.
Mas os outros eram mais e batiam-se como desesperados, que ou triunfavam, ou não tinham salvação. Traziam aquela audácia que o Senhor Ventura conhecera já, nos tempos em que ele tinha tudo a ganhar e nada a perder de uma refrega. Eram um jogo no futuro, enquanto o alentejano e os companheiros eram somente uma defesa do passado. E, por isso, acabaram por levar a melhor. Entraram, mataram, saquearam, incendiaram, e só por milagre o Senhor Ventura conseguiu salvar-se na escuridão, com o corpo do Pereira às costas, a gemer, ferido de morte por uma bala que lhe atravessara o peito” . página 49

“No silêncio da noite e em pleno deserto, sob um céu escuro onde só uma estrela bruxuleava, o Senhor Ventura recebeu então no mais profundo da alma o último suspiro do companheiro. E pela primeira vez a sua humanidade dura teve consciência do mistério da vida e da morte, e das forças cósmicas que aproximam os homens e os fazem amar-se uns aos outros. Por que razão chorava ele o corpo exangue que lhe arrefecia nos braços? Por que motivo um desespero amargo lhe apertava a garganta? Tanta gente que vira morrer a seu lado! Mas, por mais que quisesse, não conseguia render-se à insensibilidade deste argumento.Conhecera aquele sujeito por acaso – continuava, a tentar convencer-se -, sabia quês e chamava Pereira, era do Minho e cozinhava bem. Nada mais. Que o distinguia, afinal, dos outros? Contudo, as lágrimas corriam-lhe em fio pela cara abaixo.” página 50