23/05/2009

fotopoema

café da manhã de domingo

apanhado
desacompanhado
desfocado
cortado
faminto
à porta da padaria. sem apanhar nosso pão gostoso de cada dia.
poema e fotografia: Roberto Soares Coelho

explosões do verbo e da cidade

Depois de mais de dois meses sem praticamente a presença da poesia neste blogue, uma seleção de poemas focados na vida urbana, uma visita íntima a este caótico, precário e cada vez mais explosivo espaço onde desenrolamos nossas resistências e sobrevivências - exatamente as resistências que tornam este nosso espaço também cada vez mais fascinante, sedutor e promissor.

De início, dois poemas bem parecidos na temática, e não só na atmosfera ou cenário, os excelentes ‘Constelação’, de Carlos Ernesto, e ‘As filhas da noite’. Este último é de José Antônio Cavalcanti, editor do blog “Poemargens”. Do poeta Zantonc, como o próprio se autodenomina, publicamos também a última parte da trilogia ‘Ar, margens, dons’.

Quanto a Ernesto, quatro poemas este mês. DESVELAR já publicou, em dezembro, o seu ‘Poema inexato a artur rimbaud’. Vale registrar que os seus poemas são produto de uma sensibilidade e um talento precoces, foram escritos por Ernesto dos 14 aos 18 anos e fazem parte do ‘Flutuais’, editado artesanalmente em 1985.

De Waldo Motta, alguns poemas talvez não falem expressamente do cenário urbano, talvez uma fala mais existencial, mas não deixa de ser uma fala que brota no meio e em função da vivência urbana - e de suas violências. Permitindo-me aqui um vôo da imaginação, vejo uma íntima complementação entre Waldo e Ernesto: como se os irados e desdenhosos clamores de Ernesto em ‘Nosso tempo’ fossem respondidos pelo pacificado solilóquio de ‘O labor discreto’ - aliás, Waldo parece também dialogar com um próprio poema seu, o 'Receituário..' .
Ou como se, numa divertida sobreposição de vozes, Ernesto, em ‘Noturno’, estivesse a confirmar com ironia um poema de Waldo, o ‘Limiar’ (publicado em janeiro), como se estivesse a descrever, com impiedosa frieza e sarcasmo, o ‘personagem’ do poema.

Vicente Filho não esquece sua marca registrada (aquela ironia mesclada de melancolia já apontada aqui, num comentário publicado em novembro) e no poema 'no shopping' sai destilando-a pelos sedutores corredores dos shoppings - esses assépticos templos do consumo, ninhos da apatia e do deslumbrado conformismo, a esconder a solidão, o medo e a indiferença, em meio a multidões, vitrines e luzes multicoloridas... e, claro, em meio a mercadorias, milhares delas, sempre renovadas e sempre se insinuando aos consumidores, como se fossem uma real e inadiável necessidade em suas vidas; e depois VIcente num belo e convincente contraponto aponta o dedo para as feridas do mundo de verdade: ‘fora do shopping’.

Trago também mais um fotopoema de minha autoria, ‘Café da manhã de domingo’. A foto, eu a fiz creio que em 2000, quando ainda aprendia a fotografar. É fácil reparar nas falhas: os pés do garoto cortados, a imagem meia embaçada, com o objeto mal focado. O poema propriamente dito, creio que o escrevi um ano depois, e o interessante é que muito do poema repousa nas falhas técnicas da foto, quando jogo com o corte do garoto e da foto, com o ‘desfocado’ da imagem e do olhar do personagem, mas a interação saiu de forma extremamente espontânea, sem a preocupação de tentar justificar as falhas da foto - um desses ‘misteriosos’ desvelamentos da criação artística. Registro ainda que a foto foi tirada próximo a uma padaria do centro de Vitória, a ‘Pão Gostoso’, mas de resto poderia ser obtida em qualquer lugar da cidade, são personagens que abundam por aí - desde que ‘fora do shopping’, é claro.

Assim como também estão em toda parte da cidade sinais de uma explosão/implosão cada vez mais iminente. Como, aliás, também já alerta o poema ‘Receituário para racistas...’, de Waldo Motta, com suas incendiárias invocações de 'um angu' a respingar para todos os lados e em cima de todo mundo.
*****************
Enfim, aí estão algumas explosões do verbo a tentar retratar as explosões e implosões de cada dia na cidade.
Mas que as potencialidades dessa explosão sejam, sim, canalizadas para a destruição do que essa ordem tem de ruim, ultrapassado, desumano e... bárbaro, rumo à construção de algo libertário, decente. Porque, afinal, alguma explosão vai com certeza acontecer, e afinal é melhor alguma explosão real do que essas pequenas e disfarçadas explosões e implosões do dia a dia.

Pois o risco é que fiquemos apenas nessas pequenas e fragmentadas explosões, que vão aos poucos instalando a barbárie nas cidades e nas nossas vidas, e aos poucos vão fazendo com que aceitemos a barbárie como algo natural. O risco é, também, que essas implosões do dia a dia sejam cada vez mais utilizadas pelos poderes do Estado, que sejam conduzidas ou manipuladas rumo à barbárie, barbárie essa que contribui exatamente para a manutenção da velha ordem: violência, consumismo, medo, existências deprimidas e sufocadas, até que se instale de vez uma instabilidade quase total: nas ruas, no trabalho, em casa, no trânsito.

Pois claro que tudo isso é muito interessante para o atual sistema de poder, afinal seria a ordem feita de desordem, seria a ordem da instabilidade, a ordem que deixaria a todos e todas assustados, reacionários e à mercê das exigências e promessas do Poder de plantão, promessas e exigências que com certeza sempre virão vazadas num tom de urgência e de esperança; ou seja, primeiro cria-se um caos, depois exigem-se sacrifícios e renúncias da massa assustada e, ao mesmo tempo, acena-se com mudanças e soluções que sempre estão um pouco mais além do presente, num eterno recomeço, com mais caos e mais sustos e renúncias, e mais projetos de mudanças e soluções... Enquanto isso, a barbárie preenchendo cada dia mais os nossos espaços, ao mesmo tempo em que a ordem anestesia-nos com seus corredores de shoppings atulhados de bugigangas, eletrônicas ou não, e anestesia-nos com vários outros narcóticos, internéticos ou não.

E que a explosão seja como uma resposta àquele grito lançado há décadas por Drummond, quando lamentava não se poder ‘dinamitar a ilha de manhattan’. Que nos permita um recomeço, onde se possa enfim juntar todo mundo, misturar todos e todas num novo, libertário e grande angu: prostitutas, jovens mendigos, bêbados, poetas, os deslumbrados dos shoppings, mercadores e marcados. Onde afinal todos nos encontremos livres do domínio do medo ou da indiferença, quando então as pessoas não precisarão mais se comportar como almas de plástico a se refugiar em shoppings, a fugir do verdadeiro mundo e da verdadeira vida, como se assim pudessem de fato deixar o ‘mal de lado’, quando na verdade o que se deixa de lado é o encontro com a riqueza e a fragilidade, com a coragem e o mistério de cada um.

Que ela nos permita superar a dicotomia entre o shopping e as ruas, para que a rua seja novamente o lugar de todos e todas, que não sejam mais sinônimo de medos, mendicâncias e merdas nas calçadas, nem que haja mais necessidade de existir coisas e espaços como shoppings, ou que pelo menos eles não sejam mais sinônimo de refúgio, de guetos e de fuga do mundo, que os novos espaços de lazer sejam realmente lugar de encontro entre pessoas.

E que essa explosão venha logo, venha realmente a tempo de evitar que essa ordem já degenerada nos transforme em autômatos a habitar nos bueiros da história, assépticos, saciados e moderninhos, mas assustados como ratos e com alma de plástico; que a explosão provoque em nosso ‘louco tempo’ uma transformação bastante diferente daquele mórbido roteiro que o jovem Ernesto retratava, já em 1978, no seu vibrante poema ‘A metamorfose’; aproveitando a metáfora dos roedores: para que não tenhamos a incômoda sensação de viver como ratos num mundo transformado num imenso e policiado ‘parque de araque’, tal como no poema de Vicente Filho, ‘no shopping’.

E que esses e muitos outros poetas, com as suas explosões do verbo, sigam cumprindo uma tarefa que também é da poesia, que é a de alertar para o perigo da morte da alma, da ausência da lucidez, do sonho e da ousadia, e a de convidar ou convocar para as reais e pulsantes possibilidade de um outro mundo e de uma outra vida. Que continuem com seus cantos incendiários e indignados, a colaborar para que esses nossos espaços de resistência, estas nossas cidades, além de fascinantes e envolventes, mantenham-se também como promessa de resgate e redenção.
*************
*************
Por fim, vale registrar que nenhum dos poetas, comentados neste texto, restringe a sua fala a apenas cantos engajados ou indignados com a miséria social, afetiva, intelectual ou espiritual, imposta aos homens e mulheres pela lógica do atual modelo de civilização; a esse respeito leia também o texto um pouco de mares e silêncios.


Roberto Soares Coelho

constelação

o céu é uma abóbada de lótus
tudo é público...

as abstrações, os vapores... desprezíveis!

só existe a prostituta, qualquer prostituta
que conta estrelas, só
despojada, infernal
pernalta
gritante

e na última constelação
só ela vibra, ruflando asas
voando...

sobre horizontes pudicos e justos

carlos ernesto - flutuais, 1985

as filhas da noite

passeiam pelas calçadas
atrevidas
atravessadas pela vida

suas pernas são foices
que cortam o gozo
e se abrem vazias
como um cofre
à espera de moedas

zantonc - blog poemargens

ar, margens, dons (parte III)

as ruas então em festa:
códigos, circuitos, câmeras de vigilância
verbiequívocovisuais controles anêmicos
acadêmicos políticos policiais
- o mundo oficial -
alimentam as hienas noturnas

o capital contabiliza todos os excessos
a mais-valia compra corpos e felicidade
plastificada, no cartão ou no paraíso

A escória
- resíduo do humano liquefeito -
escorre de guetos, górgonas e esgotos
invisível licor a invadir becos e portas secretas
contido apenas por gps e algemas

invisíveis da mais espessa invisibilidade
figuras goyescas lançam rajadas e granadas
contra as estrelas

zantonc - blog poemargens

nosso tempo

meu tempo é louco
louco e mastigável (feito drops)
nele não há orifícios é incolor
e decíduo

onde repasta-se é mudo, torpe e
aleijado (parece um velho doente)

meu tempo não vibra, não torna
em nada transforma - é feio e arrasta-se

meu tempo é fantoche ridículo
estático
cheirando a pó e fungos
venenosos

carlos ernesto (flutuais)

o labor discreto

As coisas não mudam assim
da noite para o dia, céleres.
Por isso, perdi a flama
que fazia de meus versos
uma tocha iracunda.
porque no final das contas
o importante é ter mudado
um pouco de mim, ao menos.
O cupim, no anonimato,
rói as vértebras deste tempo.

waldo motta (o signo da pele, 1981)

noturna

passeiam o bêbado e o frio
com o rosto pesado e violento
sob um montulho de círios
a cidade é um pasto adverso

tem seus signos e visgos
hálitos e urtigas

e também um eco medonho
que o bêbado sorve, pensando
trair frieza da vida

carlos ernesto (flutuais)

21/05/2009

os rios profundos

Obra do escritor peruano José Maria Arguedas (1911-1969).

Essa obra reflete a preocupação de Arguedas com o resgate das raízes míticas e históricas não apenas do povo peruano mas de todos os povos andinos. O que estava em questão, para o escritor, não era apenas defender ou buscar uma identidade nacional para o Peru, mas desconstruir a própria noção de pátria tal como imposta pelos colonizadores europeus. Antes das pátrias de imposição européia, já existiam as pátrias andinas, astecas, maias, guaranis, tupis, mapuches e inúmeros outros.

Mas os trechos aqui escolhidos não refletem essa problemática de identidades e alteridades, eles mostram outra faceta da prosa de Arguedas. Mostram um encantamento com as coisas que ultrapassa até mesmo o poético: árvores, rios, rochas, pontes, estradas, são mostrados numa fala que tem algo de denso e cósmico. Fogem daquela magia meio delirante que é comum na literatura do chamado realismo fantástico, a qual imperou por algum tempo na literatura latinoamericana.

A magia de Arguedas não recorre a nenhum fantástico, antes, com a sua sensibilidade, mostra o que há de fascinante mesmo nas coisas e paisagens que não aparecem como espetaculares. É como se em sua obra Arguedas buscasse um reencontro com o mítico e com o ancestral, não apenas através dos homens e de suas culturas e costumes, mas também através das coisas, dos lugares, do mundo, vendo o ancestral na simples presença ou na simples aparição das coisa no mundo e em volta de nós; como se buscasse, à maneira de um Heidegger (um europeu, note-se), a pura manifestação do ser nos entes que nos rodeiam.

A ressalvar, apenas o clima cansativo que o enredo adquire, por girar excessivamente em torno das aventuras e desventuras afetivas, físicas e existenciais do jovem narrador. Abordagem mítica, busca ancestral das coisas, com a maestria com que Arguedas o faz, exigiria um enredo menos juvenil, mais amadurecido; embora vazado na mesma poesia frágil e encantada que perpassa a narrativa do jovem em questão.
As Viagens
"Meu pai nunca pôde encontrar onde fixar residência; foi advogado do interior, instável e errante. Com ele conheci mais de duzentas cidadezinhas. Temia os vales quentes e só passava por eles como viajante; ficava algum tempo morando nas cidades de clima temperado: Pampas, Huaytará, Coracora, Puquio, Andahuaylas, Yauyos, Cantagallo... Sempre junto de um rio pequeno, sem bosques, com grandes pedras brilhantes e peixes miúdos. A murta, os sachos, o salgueiro, o eucalipto, o capuli, a tara, são árvores de madeira limpa, cujo galhos e folhas se recortam livremente. O homem as contempla de longe; e quem procura sombra se aproxima delas e repousa sob uma árvore que canta sozinha, com uma voz profunda, em que o céu, a água e a terra se confundem.

As grandes pedras fazem parar a água desses rios pequenos; e formam os remansos, as cascatas, os redemoinhos, os vaus. As pontes de madeira ou as pontes pênseis e os cestos para as travessias apóiam-se nelas. Brilham ao sol. É difícil escalá-las porque quase sempre são compactas e polidas. Mas desses pedras percebe-se como o rio se remonta, como aparece nas curvas, com em suas águas se reflete a montanha. Os homens nadam para alcançar as grandes pedras, cortando o rio chegam até elas e dormem lá. Porque de nenhum outro lugar se ouve melhor o som da água. Nos rios largos e grandes nem todos chegam até as pedras. Só os nadadores, os audazes, os heróis; os outros, os humildes e as crianças, ficam; espiam da ribanceira como os fortes nadam na correnteza, onde o rio é profundo, como chegam até as pedras solitárias, como as escalam, com quanto trabalho, e depois se erguem para contemplar a quebrada, para espirar a luz do rio, a força com que corre e se interna nas regiões desconhecida."
(Página 27)****************
"Por isso, aos domingos, saía precipitadamente do colégio, a percorrer os campos, a atordoar-me com o fogo do vale.
Descia pelos caminhos dos canaviais, à procura do grande rio. Quanto mais descia, mais poeirento e quente era o caminho; os pisonayes formavam quase bosques; os terebintos ficavam mais altos e grossos. O terebinto que nas montanhas mornas é cristalino, de vermelhas uvas musicais que cantam como chocalhos quando sopra vento, aqui, no fundo do vale ardente, transforma-se numa árvore frondosa, alta, coberta de terra, como que esmagada pelo sono, seus frutos apagados pelo pó; submersa como eu no ar denso e calcinado.
Às vezes podia chagar ao rio, depois de andar várias horas. Chegava a ele quando mais angustiado e aflito me sentia. Contemplava-o, de pé sobre o vão da grande ponte, apoiando-me numa das cruzes de pedra encravadas no alto da coluna central.
O rio, o Pachachaca temido, aparece numa lisa, na base de um precipício onde não crescem senão trepadeiras de flor azul. Nesse precipício costumam descansar os grandes papagaios migradores; prendem-se nas trepadeiras e chamam aos gritos, da altura.

Rumo ao leste, o rio desce em corrente tranqüila, vagarosa e trêmula. Os grandes galhos de chachacomo, que roçam a superfície de suas águas, arrastam-se e voltam violentamente, ao desprender-se da corrente. Parece um rio de aço líquido, azul e risonho, apesar de sua solenidade e de sua fundura. Um vento quase frio varre o alto da ponte.
A ponte do Pachachaca foi construída pelos espanhóis. Tem dois olhos altos, sustentados por bases de alvenaria, tão poderosas como o rio. Os contrafortes que canalizam as águas estão presos nas pedras, e obrigam o rio a avançar agitando-se, dobrando-se em correntes forçadas. Sobre as colunas dos arcos, o rio esbarra e se parte; a água se eleva lambendo o muro, pretendendo escalá-lo, e se lança depois nos olhos da ponte. Ao entardecer, a água que salta das colunas forma arco-íris fugazes que giram com o vento.

Eu não sabia o que mais amava, se a ponte ou o rio. Mas ambos desanuviavam minha alma, inundavam-na de fortaleza e de sonhos heróicos. Apagavam-se de minha mente todas as imagens lastimosas, as duvidas e as recordações más."
(Pagina 67)
Os rios profundos, editado pelo Círculo do Livro, com cortesia da Editora Paz e Terra

um pouco de mares e silêncios

Em meio a tantas explosões do verbo e da cidade, um pouco de trégua, a suave mas funda fala de Mariana Botelho, em dois poemas. Afinal, a tarefa do poeta não é apenas a de denunciar o feio, o ruim e e o velho. Há que continuar celebrando a vida e o mundo mesmo em meio às explosões e à barbarie, e também há que manter acesa a vivência e a memória de outros mundos, dos vastos e vibrantes oceanos que estarão abertos a todos e todas - independente de serem ou não chamados de poetas e artistas - após as duras batalhas contra as estruturas que sustentam essa lógica obsoleta e perigosa, que governa nosso mundo e nossas vidas.
Enfim, a poesia se faz presente em todos os cantos: naqueles que denunciam e explodem e naqueles que celebram, que exploram e preparam os ricos solos e os vastos mares de cada um e de todos nós; embrando, claro, que esses diferentes cantos às vezes se irradiam de um mesmo poeta. Aliás, é preciso registrar que nenhum dos poetas, comentados no texto explosões do verbo e da cidade, restringe a sua fala a apenas cantos engajados ou indignados com a miséria física e espiritual, imposta aos homens e mulheres pela lógica do atual modelo de civilização.

coisa que me ocorreu de repente

a poesia se derrete nas mãos do poeta
como gato que ele afaga

a poesia queima nas mãos do poeta
como um fogo que ele alimenta

a poesia afoga as mãos do poeta
é um copo do oceano que ele mesmo inventa

o poeta é um mar de si mesmo
mariana botelho (blogue suave coisa)

abstrato


eu nunca beijei um poema.

no entanto ele está aqui
roçando leve minha
boca

nas horas dos
mais
doídos
silêncios
mariana botelho (blogue suave coisa)

no shopping

nem mesmo pode brotar
real alegria nesse lugar
logo nesse lugar
que tanto detesto

quando quereria rir por último
dos grandes e assombrosos percalços
calçados e percebidos
nos piores e menores momentos

simples, tão simples vida
a flutuar em escadas e pisos
porque a mim arrasam tantas
tentativas vãs?

como se fosse buraco de rato
ouvindo sinfonias
num parque de araque

vicente filho

fora do shopping

a causa não tem casa
mora na rua e quer a sua
você não vai dar
até quando, quem sabe...
meu time não vence
o outro perde
no zôo os animais
não querem mais pipoca
quanta droga...!
a polícia vicia
vigia o quadro morto
da ressurreição de ninguém

vicente filho

saudades do shopping

tudo ia bem
o mal de lado
o dia bem bolado
na sinfonia musical
da escada a rolar
rolar é bom
melhor ainda
de olhos fechados...
como sou esquecido
tinha gravado tudo a lápis

mas à noite sonhei...
com a borracha!

vicente filho

amamos muito tudo isso!

A edição dos poemas de maio já estava praticamenete encerrada, preparava-me para colocá-la no ar, quando veio-me o texto abaixo, como um verdadeiro maná de verbo libertário a se despejar de céus cibernéticos e incendiários. É desses textos que dispensam apresentação ou complementos.
Sua força e lucidez falam por si.
Apenas a registrar a extrema agilidade com que o autor pula de tema em tema, de imagem em imagem, amarrando-os numa fala mesclada de sensibilidade, contundência e convocatória desafiante, a desfilar ante nossos olhos e imaginação as realidades assépticas e plastificadas que passeiam pelos shoppings nossos de cada dia.
A esse respeito, que o texto seja lido junto com os poemas de Vicente Filho, logo acima, e com o texto explosões do verbo e da cidade - o pensamento e a arte juntos no incansável combate.
Amamos muito que ainda existam falas assim.

Amamos muito tudo isso!
Dos grandes templos às humildes vendas.
Amamos muito tudo isso.
Amamos.

No luxo extremo vemos as Grand Magazines.
Locais esmerados onde prevalece o topo da cadeia alimentar do consumo.
Os Shoppings Zonas sul, onde são todos loiros, até as garçonetes, até os seguranças, inclusive as moças que cuidam da faxina. É o sonho nórdico, as indiscretas atualizações da ideologia nazista. É para lá que os burgueses afluem, levando suas companhias, naqueles templos do efêmero, onde salários mínimos são gastos em intervalos de minutos.
As belas vendedoras, que atendem tão educadamente os barões e as baronesas do capital, sempre sorriem. Mas no fundo daquela gentileza há um ódio infinito e secreto, silencioso.

Amamos muito tudo isso.

Há alguns requisitados restaurantes Class A, cujos atendentes ficam às portas do estabelecimento em dias de chuva, portam guarda-chuvas para assegurar que os clientes (Deuses) não se molhem. Os garçons se encharcam, mas preservam a integridade dos consumidores. Um nobre francês do século XVIII sentir-se-ia em casa nesse lugar.

Amamos muito tudo isso.

Nos shoppings populares as pessoas se esmagam na busca sísifa pelo nada e pelo nenhum. O novo aparelho de celular é comprado, consolo momentâneo para a baixa renda, que busca no mercado pirata a consumação do seu sonho consumista. Meses depois estará novamente insatisfeito. O aquecimento da economia agradece.

Amamos muito tudo isso.

O capitalismo é bom. Inerente ao homem. O ser humano tem predisposição para a atividade comercial direcionada ao lucro. Essa teologia tinha seu charme no setecentismo, trajando vestes iluministas e prometendo a emancipação perante o intervencionismo absurdo das grandes cadeias de poder. Seus prosélitos agiram de boa fé, divulgaram aos quatro cantos do mundo as benesses do capitalismo.
Diziam pacientemente para os nômades africanos, e em voz até infantilizada, que livre comércio era o único caminho para a felicidade. Convenceram os chineses de que a única sacralidade digna de nota seria a libra esterlina. Abordaram os aborígines da Oceania e discorreram sobre a relevância existencial do ato de comprar e vender.

Divulgaram o evangelho do lucro e prometeram a felicidade. Nada sabiam sobre a destruição do bioma, a extrema exploração dos menos válidos e da crise existencial inerente ao ato insano do consumismo.
Agiram de boa fé, ainda que com uma malícia experimental. Séculos mais tardes, desacreditados por catequizadores bem mais engajados e articulados (homens barbudos, sisudos, com lenços e polainas vermelhos), acabaram por se tornar menos elegantes em suas argumentações. Alteraram o discurso, não se tratava mais de uma busca pela felicidade, mas sim de uma imperiosidade da história, uma tecnicidade, entregar-se ao capital não era uma escolha, mas uma obrigação.

A romântica inocência dos adeptos da Escola Clássica deu lugar ao sarcasmo amargo dos neoliberais. Alguns descobriram a futilidade de se dialogar com os mineiros, tornou-se mais viável ignorar seus lamentos.
Por algumas décadas eles reinaram, e a cada gemido do mundo arrotavam. As cifras estavam a seu favor. Porém, o tempo das vacas magras chegou, alguns mortos acordaram, fantasmas ameaçadores passaram a visitar os sonhos dos que nunca choram.
Os neoliberais se ajoelharam perante o panteão e imploraram pela intervenção: “Ex Machina, ajude-nos”. Foi um lampejo, mas o suficiente para que perdessem a compostura. Sentiram-se envergonhados, tal qual o apaixonado que por um rompante romântico declara o amor para uma indiferente dama.

Constrangimento. “Tudo segue como antes”, disseram, “o mercado é nosso guia, confiem nele, ele nos guiará à felicidade”. O mundo olhou com um ar incrédulo e reprovador. Ficou evidente a covardia e a inépcia desses pastores, desses condutores de almas. Mais do que nunca estão solitários. O ódio de muitos se volta contra eles. Há um olhar homicida dos pobres, do primeiro e terceiro mundo. Os enganados, os despejados, os famintos, os que fedem a mijo, eles querem acertar as contas, querem tudo que foi prometido. Alguém disse carnificina? O Alto Clero do capitalismo está aterrorizado.

Amamos muito tudo isso.

a metamorfose

diante de mundo rápido
tempo estremece
não há tempo para vertigens
movimentos
soluços
revoltas

seus olhos ardem
não compreendes as razões
há mercúrio letal
em tuas veias
em tuas artérias
mercadores
marcam tua carne
mostram-na
avaliam-na

você compra diariamente
consome
vício inadiável
pacto ancestral
gosto de carne
ferro aço
naves de alumínio
(nunca voaste)

trazes
alma volátil
peso absurdo
se desfaz em mil folhetos

dia a dia
gota a gota
você não percebe
não discrimina
o homem da maqui-máscara
a fruta da massa plástica

e qualquer dia
você vai correndo
pela rua
em becos
e bueiros
e te chamarão...
rato rato
rato rato

carlos ernesto (flutuais)

receituário para racistas e contra-receita de angu

Ogun pá
lelé pá
Ogun pá
koropá...
(canto afro)

Quem atiça o tição
sabe do risco que corre
sabe que ao bulir com fogo
é arriscado se queimar
é arriscado provocar
a ebulição de quanto
há tanto vem nos enchendo
o caldeirão da paciência.

Portanto, todo cuidado
é pouco quando se atiça
o tição, quando se bole
com o fogo, pelo risco
de transformar rebuçado
em ração para a racinha
ordinária dos racistas

Quem atiça o tição
sabe muito bem do risco
de atear fogo em tudo
sabe que, ao provocar
a ebulição da massa
é arriscado explodir
o angu em todo mundo

sabe que, súbito, tudo
tudo pode ficar preto
& vermelho, como queiram
num belíssimo incêndio
um incêndio inusitado.

Pois quem atiça o tição
atira mais lenha aos sonhos
que nos abrasam, braseiro
oculto sob o borralho
dessa vida borralheira.

waldo motta (waw, 1991)

a hora adiada

Depois de mim, este miserável
quarto de pensão, quantos não abrigará?
os olhos se arrastam pelas coisas
como os de quem, no limiar da morte
olha pela última vez o mundo de que se desgarra

Os parcos móveis não me explicam
Esses cubos de concreto que compõem a cidade
não me explicam
a lua, distante e neutra, as estrelas
omissas em sua intangibilidade
não me explicam

Mas porque dessa coisa indefinida
e indócil e fechada que sou
vem esta vaga esperança
de me explicar a mim
não me suicido
por hoje

waldo motta (o signo na pele, 1981)

19/05/2009

alerta por uma internet livre

Pelo Brasil afora inúmeras têm sido as iniciativas de mobilização contra iniciativas que tentam impor restrições ao uso do internet. Toda essa movimentação se intensificou a partir do momento em que o Senado aprovou, em julho de 2008, o substitutivo do Senador Eduardo Azeredo, o qual “cria 13 novos crimes na internet e novas restrições às/aos usuárias/os e provedores, tal como obriga provedores a guardar registros pessoais de usuárias/os da internet para possíveis futuros exames da ‘Justiça’, se assim requisitado. O projeto foi modificado desde a saída de sua casa de origem, Câmara dos Deputados, para onde volta novamente para aprovação” (CMI).

Quem quiser conhecer mais e se envolver nessa importante campanha, vão alguns links:
Também segue nesta edição um manifesto em defesa da internet livre. Além de um texto lúcido e pertinente em suas propostas, vale registrar o singelo mas contundente alerta ao final: ‘...então a janela de oportunidade aberta pela Internet terá sido fechada, e teremos perdido algo bonito, revolucionário e irrecuperável.’

Manifesto da cultura livre
26 de Abril de 2009

A missão do movimento da Cultura Livre é construir uma estrutura participativa para a sociedade e para a cultura, de baixo para cima, ao contrário da estrutura proprietária, fechada, de cima para baixo. Através da forma democrática da tecnologia digital e da Internet, podemos disponibilizar ferramentas para criação, distribuição, comunicação e colaboração, ensinando e aprendendo através da mão da pessoa comum, e através da verdadeiramente ativa, informada e conectada cidadania: injustiça e opressão serão lentamente eliminadas do planeta.
Nós acreditamos que a Cultura deve ser uma construção participativa de duas mãos, e não meramente de consumo. Não nos contentaremos em sentar passivamente na frente de um tubo de imagem de mídia de mão única. Com a Internet e outros avanços, a tecnologia existe para a criação de novos paradigmas, um deles é que qualquer um pode ser um artista, e qualquer um pode ser bem sucedido baseado em seus méritos e não nas conexões da indústria.
Nós nos negamos a aceitar o futuro do feudalismo digital, onde não somos donos dos produtos que compramos, mas nos são meramente garantidos o uso limitado enquanto nós pagamos por tal. Nós devemos parar e inverter a recente e radical expansão dos direitos da propriedade intelectual, que ameaça chegar a um ponto onde se predominará sobre todos os outros direitos do indivíduo e da sociedade.

A liberdade de construir sobre o passado é necessária para a prosperidade da criatividade e da inovação. Nós iremos usar e promover o nosso patrimônio cultural, no domínio público. Faremos, compartilharemos, adaptaremos e promoveremos conteúdo aberto. Iremos ouvir a música livre, apreciar a arte livre, assistir filmes livres e ler livros livres. Todo o tempo iremos contribuir, discutir, comentar, criticar, melhorar, improvisar, remixar, modificar e acrescentar ainda mais ingredientes para a ‘sopa’ da cultura livre.
Ajudaremos todo mundo o entender o valor da nossa abundância cultural, promovendo o software livre e o modelo ‘open source’. Vamos resistir à legislação repressiva que ameaça as liberdades civis e impede a inovação. Iremos nos opor aos dispositivos de monitoramento em nível de hardware, que impedirão que os usuários tenham controle de suas próprias máquinas e seus próprios dados.

Não permitiremos que a indústria de conteúdo se agarre aos seus obsoletos modelos de distribuição através de uma legislação ruim. Nós seremos participantes ativos em uma cultura livre de conectividade e produção, que se tornou possível como nunca antes pela Internet e tecnologias digitais, e iremos lutar para evitar que este novo potencial seja destruído por empresas e controle legislativo. Se permitirmos que a estrutura participativa, e de baixo para cima, da Internet seja trocada por um serviço de TV a cabo, se deixarmos que o paradigma estabelecido para criação e distribuição se reafirme, então a janela de oportunidade aberta pela Internet terá sido fechada, e teremos perdido algo bonito, revolucionário e irrecuperável.

O futuro está em nossas mãos, devemos construir um movimento tecnológico e cultural para defender o comum digital.

Leia, divulgue, replique, traduza, republique mas não fique aí parado!
(Este manifesto, publicado originalmente pelo coletivo ‘Free Culture’ - http://freeculture.org/manifesto - foi traduzido e divulgado pelo editor do blogue Xô Censura’.

Textos relacionados:

a revitalização da assejur e a construção de uma justiça popular

A ASSEJUR (Associação dos Escreventes Judiciários do Espírito Santo) realizou no dia 15 de maio uma assembléia da categoria, com o objetivo de promover a revitalização da Associação – para quem não sabe, escreventes são os funcionários dos cartórios dos fóruns, que trabalham nos processos e atendem as partes envolvidas e os advogados.

Durante a Assembléia foram escolhidos os cinco membros da Comissão Eleitoral, a qual irá conduzir o processo de escolha da nova diretoria. As inscrições de chapas deverão acontecer entre os dias 01 e 23 de junho, e as eleições possivelmente acontecerão em julho. O fato se deu na sede do SINDIJUDICIÁRIO, em Vitória, e compareceram cerca de quarenta pessoas, o que aparentemente é pouco.
Mas como se trata de uma primeira assembléia, a avaliação é de que o encontro foi extremamente positivo. Afinal, mesmo tendo sido fundada em 2001, a ASSEJUR nunca adquiriu a necessária visibilidade junto à categoria, a ponto de a maior parte dos escreventes até mesmo desconhecer a sua existência. Nunca teve uma sede própria e nem um cadastro de filiados.

Não há aqui o propósito de analisar a atuação dos diretores, eleitos ao longo destes oito anos, seus méritos ou deméritos, suas dificuldades ou sua dedicação etc.
O que cabe registrar aqui é a extrema importância (e não somente para os escreventes) desse processo de revitalização da Associação. É preciso lembrar que, mesmo sendo a categoria mais numerosa do judiciário, tem sido irrisória a participação dos escreventes nas assembléias, campanhas e mobilização do SINDIJUDIÁRIO, o sindicato que representa todos os servidores da justiça capixaba. É como se o sindicato representasse apenas os interesses de escrivães, comissários, agentes de serviço e oficiais de justiça, esses últimos, aliás, constituindo a categoria mais atuante dentro do sindicato.

Evidente que os motivos deste afastamento não estão na atuação do SINDIJUDICÁRIO, não se pode de forma alguma afirmar que os seus diretores têm priorizado as outras categorias em detrimento dos escreventes. Se, por acaso, em algumas situações as questões relativas aos oficias de justiça, por exemplo, são mais enfatizadas que as de outras categorias, isso se deve, é claro, à presença mais constante e articulada destes servidores nas convocações e mobilizações do SINDIJUDICÁRIO. Mas nada que tenha prejudicado ou se oposto aos problemas das outras categorias.

Isso nos leva à inevitável conclusão de que o afastamento e a omissão dos escreventes se deve à própria categoria. E isso não é difícil de entender. Sabemos todos que a história do judiciário capixaba em relação aos servidores tem sido feita de nepotismos, apadrinhamentos, proteções, discriminações e arbítrios. Somente de alguns anos para cá, com um princípio de moralização dos concursos públicos, e a consequente renovação do quadro de servidores, é que se tem criado (bastante lentamente, é verdade) um clima de maior liberdade, reflexão crítica e exteriorização de demandas por parte até mesmo dos escreventes.

Os escreventes, mesmo os mais antigos, começaram a perceber que não existe mais a famosa ‘Família do Judiciário’, quando todos os reajustes, e outros benefícios, que valiam para os magistrados também valiam para os demais servidores; claro, afinal entre os servidores beneficiados com essa política de Grande Família a imensa maioria era de apadrinhados e parentes de desembargadores e magistrados. Ocorre que, junto com essa ‘proteção’, também havia (e ainda há em muitos locais de trabalho) uma espécie de chantagem, de ‘cobrança da proteção’, a famosa política do ‘Manda quem pode, obedece quem tem juízo’, cujos efeitos na vida dos escreventes o texto amélia, a escrevente de mentira (de Rômulo Bernabé, diretor de Política Sindical do SINDIJUDIÁRIO) retrata muito bem.

Nesse sentido, o fim da ‘Grande Família’ só deve ser comemorado, afinal está sendo uma oportunidade de, finalmente, os escreventes se assumirem como uma categoria de trabalhadores de fato, em toda a sua dignidade, a exercitarem todos os seus direitos e deveres, com todos os sacríficios e riscos, mas também com todas as satisfações e reconhecimentos, que uma tal postura significa para todo e qualquer trabalhador.

Nesse cenário, consolidar a ASSEJUR significa promover uma maior união entre os escreventes, e até mesmo entre estes e as demais categorias. E uma categoria mais forte, unida e solidária trabalha mais motivada, mais segura de seus direitos e menos sujeita a eventuais arbítrios, que infelizmente ainda estão muito mais presentes no Judiciário capixaba do que a sociedade imagina. Inclusive, escreventes que mantêm uma confiança e uma solidariedade recíprocas podem até contribuir para mudanças em procedimentos cartorários, supostamente ineficientes, acomodados ou mesmo arbitrários, herdados da política da Grande Família e do ‘Manda quem pode, obedece quem tem juízo’.

Assim, uma Associação dos Escreventes consolidada e atuante tem até mesmo importância no processo de transformação das nossas instituições. Em razão do seu maior número em relação às outras categorias, os escreventes são aqueles que fazem o Cartório e os processos andarem, são eles que mantêm um contato mais direto e duradouro com as partes e advogados (o que não significa, claro, que as outras categorias não tenham a sua óbvia e insubstituível importância).
E um maior empenho dos escreventes na agilidade e no tratamento com as partes com certeza ajudará a aproximar mais a Justiça das pessoas comuns, contribuirá para que a sociedade passe a exercitar, com firmeza e equilíbrio, o seu direito a uma justiça de fato transparente, ágil; enfim uma ASSEJUR forte significará nossa humilde mas valiosa contribuição para a construção de um Justiça Popular em nosso país, que respeite e atenda a todos aqueles que, em última caso, sustentam toda as estruturas e o pessoal da Justiça.

Essa maior proximidade dos escreventes com a sociedade também irá mostrar que a maior parte dos servidores e dos juízes são pessoas comuns, não são indivíduos inacessíveis e arrogantes, membros de grupos elitizados distantes do povo, muitas vezes traindo ou sugando esse mesmo povo, como frequentemente tomamos conhecimento, até mesmo bem debaixo dos nossos olhos - como no recente caso da Operação Naufrágio, aqui no Espírito Santo

Por fim, é importante lembrar que também o SINDIJUDICIÁRIO só tem a ganhar com essa revitalização da ASSEJUR. Afinal, os mesmos escreventes que assumirem essa nova postura de participação e compromisso com certeza também irão engrossar as fileiras do nosso Sindicato, estarão mais atentos às suas assembléias e mobilizações, estarão mais dispostos a colaborar e se envolver, e não apenas ficar ao nível da crítica fácil e inconsequente, mesmo que às vezes bem fundamentada.
Afinal, criticar e apontar problemas e erros é fácil, mas o que realmente conta é se colocar junto com os criticados para corrigirem eventuais erros na solução dos problemas. O que conta é ver a si mesmo como alguém importante no processo de transformação, é dar a si mesmo um outro horizonte, uma outra tarefa.

Roberto Soares Coelho, editor deste blog, é escrevente juramentado na Comarca de Vitória.

amélia, a escrevente de mentira


Amélia já contava com vinte anos de trabalho, sozinha com seus três mil processos. Na realidade, no seu cartório deveriam trabalhar mais duas escreventes, mas elas foram colocadas à disposição de varas da capital. Sem as companheiras o trabalho era intenso e impiedoso, mesmo quando a administração lhe disponibilizou dois briosos estagiários. Quando questionada sobre a situação Amélia respondia: 'O que há de se fazer?'.

O ambiente diminuto dificultava os movimentos, o grande volume de papel ocupava todos os espaços, os móveis inadequados trouxeram as dores nas juntas, nos dedos, na coluna. Agora estava tudo bem, Amélia vinha pagando de seu bolso RPG, pylates, massagem e ginástica de correção corpora,l e aliviada exclamava: 'Ainda bem que posso pagar'.

Amélia sempre gostou de chegar cedo no trabalho, vinha pela manhã e ficava até o final da tarde, muitas vezes sua rotina superava dez horas diárias. Não muito excepcionalmente, permanecia até as vinte horas realizando audiências que extrapolavam o horário. Temerosa registrava: 'Manda quem pode e obedece quem tem juízo'.

Amélia possui o conhecimento da vida e sabe perfeitamente que todos seremos irremediavelmente substituídos, sabe que a velhice, a doença e a morte são o destino de todos os seres vivos, mas se enche de orgulho quando lhe batem às costas e afirmam ser ela insubstituível.

Companheiros(as) escreventes da Justiça Capixaba, vocês podem fazer como Amélia e continuar a ter uma vida de mentira ou, então, comparecer nos locais de votação, no mês de julho, e junto com seus (suas) companheiros (as) iniciar a construção de uma nova realidade transformando AMÉLIA NUMA ESCREVENTE DE VERDADE.

Romulo Lopes Bernabé
Diretor de Política Sindical do SINDIJUDICIÁRIO
Leia também o texto sobre a revitalização da Assejur

terra sem mal

'Terra sem mal' é uma peça teatral escrita e dirigida por Waldo Motta. A estréia acontecerá no dia 23 de maio, às 19:00 h, em Vitória, no Centro Cultural Majestic (Rua Dionisio Rosendo, 99, Centro, 3222.5984).

Pelo que se deduz das palavras do próprio Waldo, este trabalho é de certa forma uma síntese de toda a sua trajetória de poeta. Nele estão fundidos a abordagem homoerótica, os elementos indígenas, a abertura para o místico e o transcendente, a temática social e política e, claro, tudo sacudido pelo desbunde e irreverência que vem sendo cada vez mais a marca de Waldo Motta - o que não quer dizer que a sua poesia tenha perdido algo de sua qualidade, com aquela mistura de rigor, inventividade, erudição e conhecimento do ofício.

Aliás, a propósito de sua poesia, já publiquei aqui no DESVELAR, em janeiro, um breve comentário.
Já a respeito da estréia de 'Terra sem mal', o site Overmundo publicou dois artigos, sendo o primeiro deles, de Fernando Gasparini, bastante elucidativo tanto a respeito da peça quanto da poesia de Waldo Motta. Seguem os dois endereços:

Trechos extraídos do material de divulgação da peça:

"A partir da mitologia dos índios brasileiros, e outras referências, oscilando entre o épico e o místico, o sério e o cômico, a peça Terra sem mal é um exemplo de teatro alegórico. (...) a peça satiriza, em clima de festa, rave, carnaval e ópera, a busca infrutífera do paraíso, em todos os tempos e lugares, e sugere onde se pode encontrar o objeto de tão apaixonado desejo: a zona proibida do corpo".

"Híbrido de poesia, teatro e romance, entre outras coisas, Terra sem mal pode ser entendido como um transgênero literário, numa linha estética transformista, plasmado em um estilo travesti, em que exploro a teatralidade da fala poética. Enquanto dramaturgia, lembra um auto medieval, uma paródia dos mistérios, uma crítica à moralidade dominante, uma farsa que pretende desmascarar as enganações santarronas."

"Como romance, inspira-se nas formas simples, populares: fábula, mito, lenda, literatura de cordel, romanceiro, rapsódia etc. Compêndio de filosofia selvagem. Festim antropofágico. Gozação patafísica. Matemática simbólica. Fórmulas e teoremas da alegria. Caminhos da utopia, do paraíso. "

"Para os índios brasileiros, a Terra sem mal é um lugar acessível, concreto, alcançável pelos seres humanos, nesta vida, neste mundo. Corresponde à terra sagrada, ou paraíso, de outros povos. Em hebraico e latim, desde os tempos antigos, o conceito de sagrado define um objeto, ser ou lugar isolado, proibido, intocável, proscrito, vergonhoso, infame e, também, indizível, indiscutível e inefável. Enfim, algo interditado ao povo pelas elites religiosas, econômicas, políticas."

Mais informações: Waldo Motta (8841.7348 / 3056.0024), Willian Berger (williambergere@hotmail.com)

07/05/2009

imagens do 1º de Maio

EM BELO HORIZONTE
Cartazes com detalhe na bandeira hasteada!
Forças do Estado: "Precisando qualquer coisa estamos aí" Ironia? Não sabemos. Detalhe ao lado esquerdo: trabalhadores trabalhando no 1º de maio.


Forças do Estado: "Só não pode é dependurar a bandeira no poste"


Presidente da Federação Nacional dos Índios

Texto abaixo publicado no blogue do MAL (Movimento AnarcoLibertário)
Neste primeiro de maio o M.A.L. fez aquela que podemos considerar sua maior e melhor ação desde sua fundação. Cerca de 30 pessoas estiveram presentes na praça Sete de Setembro (centro de Belo Horizonte) desde 8 horas da manhã, em memória ao movimento operário anarquista no Brasil e no mundo. Houve exposição de materiais históricos, imagens, textos, frases - contidos no painel histórico e em folhas de textos avulsas - e distribuição de quase 300 exemplares da primeira edição de nosso jornal.
Houve também uma descontração em praça pública, ao som de um violão, vários manifestantes cantaram músicas, a maioria de protesto. As bandeiras (do M.A.L. e do anarquismo) foram hasteadas em um poste de luz da praça, e posteriormente, a pedido das forças do Estado, retiramos as bandeiras e agitamos no decorrer da exposição. Várias pessoas pararam para conversar, perguntar o que estávamos reivindicando, o que estávamos recordando.
Dentre estas pessoas, muitos trabalhadores; pessoas de outros estados (dois matogrossenses acharam legal nossa ação e o movimento anarcossindicalista); aposentados; um trabalhador de telemarketing nos falou um pouco do trabalho árduo, submisso e humilhante que é o telemarketing, e para estarmos presentes um dia na porta da empresa para divulgarmos nosso ideal; um militante libertário dos anos 80 também parou para conversar e dar mais idéias experientes para nosso movimento, nosso jornal, etc; também o presidente da Federação Nacional dos Índios, que gostou muito de nossa luta, nossos ideais e ficou conversando conosco por bastante tempo. Ele quis manter contato com o M.AL. para ações em parceria, "é a mesma luta: do povo, dos índios, contra as pretensões do capital, do Estado" "não podemos esperar nada do governo, temos que nos organizar" - palavras que se destacaram na discussão.
Depois de um tempo, @s anarquistas ocuparam o pirulito da praça sete e lá hastearam nossas bandeiras e distribuíram exemplares de nossos jornais a carros que por lá paravam.Em suma, a exposição durou de 8 horas da manhã até 12 horas; nos mantemos no mesmo local, quase 300 exemplares de nosso jornal foram distribuídos. E diferente de como pensávamos que ocorreria, comunistas e partidos políticos não estavam presentes na praça, o que trouxe mais comodidade para nossa ação; não houve confronto com as forças do Estado.
Infelizmente, na nossa realidade, no 1º de maio tinham pessoas trabalhando. Também distribuimos nosso jornal para eles.
Fotos de: Marina Nobel e Marconne

NA GRÉCIA

Texto e imagens do blogue Grécia Libertária, com link ao lado, na seção Pontes



Manifestações se realizaram em muitas cidades gregas, como en Tesalónica, Pátra, Iráklio, Lárisa, Mytilíni e.t.c

Mais de 4.000 pessoas participaram da manifestação libertária, convocada por Corporações de Base, Grupos daa Esquerda Antiparlamentar, Grupos e coletivos Anarquistas, que se realizou no Primeiro de Maio em Atenas. A manifestação terminou com um Ajuntamento de Atenas, num acontecimento inédito, deixando desorientados os polícias. Durante as ações do Priemiro de Maio, foram detruídos, como de costume, câmeras de vigilância, caixas automaticos e fachadas de bancos.

resgate do primeiro de maio

(Texto relacionado: imagens do primeiro de maio )

Acima, algumas matérias e imagens para lembrar que o Dia do Trabalhador não se restringe apenas a shows e manifestações diversas, que têm cada vez mais um caráter institucional, de eventos patrocinados por empresas e órgãos governamentais. Nada contra o trabalhador receber uma justa homenagem no seu dia, a questão é refletir sobre o que implicam essas ‘homenagens’ patrocinadas por empresas e governos, com o aval de centrais sindicais de diversas posturas políticas.
A questão é saber até onde elas são uma conquista real e necessária, ou ao menos prioritária, ou se estão aí apenas como mais uma forma de neutralizar o potencial de mobilização e enfrentamento dos trabalhadores, na luta por suas demandas concretas, sejam demandas mais imediatas (tais como reposição de e perdas, redução da jornada de trabalho para 30 horas, pleno emprego etc) ou bandeiras de longo prazo, como a autogestão e a coletivização dos meios de produção.

E, o que é mais grave, a questão é refletir se tais ‘homenagens’ têm o prioritário objetivo de desmemoriar a classe trabalhadora, fazê-la esquecer, ou pior, fazê-la julgar como obsoletas e perigosas todas as suas lutas e aspirações de uma época não tão remota. Refletir se tais ‘homenagens’ visam, também, desqualificar a postura de resistência daqueles trabalhadores e movimentos que ainda acreditam numa forma diferente de os homens se relacionarem uns com os outros, principalmente em relação a uma nova forma de produzir suas necessidades, ou seja uma nova forma de trabalho, mais autônoma, mais livre, mais gratificante.

E essa reflexão se faz ainda mais oportuna, neste momento de profundos abalos no atual sistema de produção, com reais possibilidades de uma ruptura com os fundamentos políticos, jurídicos, sociais e culturais que dão sustentação a esse mesmo sistema. Afinal, é fundamental que se volte a pensar numa classe trabalhadora realmente mobilizada e plenamente consciente de seu papel nessa possibilidade de ruptura e superação do atual sistema; e isso seria extremamente perigoso para os grupos e indivíduos cujo papel e interesse é tentar manter o sistema funcionando, custe o que custar, ou melhor, às custas principalmente daqueles que são’ homenageados’ no seu dia: demissões, concessões às empresas, perda de direitos, tudo para se garantir a precária situação que já havia antes dos abalos no sistemas.
E tome festas, ‘homenagens’, entremeadas de discursos de lideranças trabalhistas a pregar um enfrentamento que nunca vem, no fundo um enfrentamento que, além de não estar nos planos das lideranças, também não atrai os assustados e conformados trabalhadores.

As manifestações, contidas nas matérias abaixo, são então uma prova de que, apesar da desmobilização e apatia geral, estão presentes movimentos e ações que ousam resistir e marchar contra a corrente.
Por outro lado, permanece como urgente e fundamental que se crie ações e linguagens que logrem atrair de fato a vasta maioria dos trabalhadores e cidadãos em geral, que permanecem apáticos, no fundo querendo acreditar que essa é apenas mais uma crise que será superada pela modernidade e competência do atual sistema de produção e, portanto, não lhes cabe preocupar-se com o desenrolar dos acontecimentos.

É urgente e fundamental convocar a todos e todas para abandonarem essa postura conformista e impotente de viver como se a história se desenrolasse num nível mais alto e mais complexo que o de suas vidas cotidianas, como se os destinos de cada um e cada uma não estivesse nas suas próprias mãos, e é preciso que seja uma convocação que não exclua nenhum setor, grupo ou categoria, que todos sejam convidados ou atraídos, seduzidos ou despertados para se postarem novamente frente à sua tarefa essencial, que é a de transformar e reverenciar a vida e o mundo no qual vivem.

As manifestações do Primeiro de Maio, aqui retratadas, têm caminhado nesse sentido, ao convocarem a juventude e os artistas, com a disposição de poetas e atores de teatro em irem para as ruas ao encontro dos trabalhadores em marchas a céu aberto pelas ruas.Aliás, a propósito dessa necessidade de se aproximar novamente artistas e trabalhadores, arte e vida, vale conhecer um texto de Augusto Boal, também publicado neste mês, como discreta lembrança pelo advento de sua morte.

Roberto Soares Coelho

ensaio para um horror futuro?

Em relação à causa da gripe suína, claro que não existem indícios sérios de que se trata de um vírus criado, ou pelo menos modificado, em laboratório. Ms lendo os textos da matéria Sobre a gripe suína, e vendo aquelas imagens de pessoas assustadas, mascaradas, e principalmente vigiadas e controladas, não há como não nos lembrarmos de certas projeções pessimistas para o futuro. É como se a gripe suína fosse um ensaio para uma futura pandemia de proporções catastróficas.

Dá o que pensar: seria apenas paranóia, ou adesão simplista à teoria da conspiração, imaginar que, um dia, esses mesmos poderes corporativos, citados na matéria e juntamente com outros poderes de Estado, irão patrocinar a (ou colaborar na) disseminação intencional de algum vírus ou microorganismo letal, com o objetivo consciente de eliminar seres humanos, em grande escala?

Infelizmente, colocar tal questão já não é apenas paranóia ou futurismo mórbido. Infelizmente, sabemos que a lógica, que governa as decisões e as ações dos detentores do poder econômico e de Estado, não é a lógica da racionalidade, ou pelo menos de uma racionalidade humanizada, e humanizadora.
E sabemos também que não se pode falar em ética quando nos referimos às pessoas que detêm esses poderes. Afinal, se elas são colocadas - ou se se colocam - à frente desses poderes é exatamente para governarem e decidirem sob as regras dessa lógica desumanizada e, assim, o que se deve e se pode esperar dessas pessoas é que elas mantenham, conservem e até mesmo ampliem as estruturas de poder que dão sustentação à lógica produtivista, predadora e consumista.

Ou seja, se estamos a falar de uma lógica de sistema, que por si só é fria, impessoal, como exigir, como falar de ética, de razão humanizadora, ao refletir sobre as atitudes daqueles que estão no poder? A única ética possível é a ética deles, a ética feita de vitória a qualquer preço, de competição. Eles somente praticar tal ética, pois não aprenderam outra, e nem a engrenagem, a lógica de sistema lhes permite outra ética, outra racionalidade, outra lógica.

E não vale acreditar ou defender que, passo a passo com a evolução tecnológica e administrativa do capitalismo, estaria havendo um aperfeiçoamento moral - ou uma diminuição da desumanização - de seus comandantes e detentores do poder. Pura ilusão. Sistemas não se aperfeiçoam em termos morais e de consciência e, portanto, seus chefes e prepostos não têm essa liberdade de escolha e evolução. Ao contrário, no seu papel de comandantes privilegiados da lógica produtiva/predadora, estão condenados a ir cada vez mais longe, estão condenados a se desumanizarem cada vez mais, em termos morais e de sensibilidade.

Assim, não há nada de amoral ou monstruoso (do ponto de vista deles, claro) no fato de se verem obrigados a tudo fazer para manterem, fortalecerem, aperfeiçoarem as condições econômicas e políticas, jurídicas e sociais que sustentam a lógica do sistema atual de produção. Sempre encontrarão uma justificativa sofisticada, elevada e inquestionável (do ponto de vista da lógica à qual servem, claro).

E, neste ‘tudo fazer’, com certeza um dia poderá se incluir aquela possibilidade mórbida da qual falamos no início deste texto. Sim, os comandantes capitalistas podem se ver obrigados um a ter que lançar mão de vírus e bactérias criados em laboratórios: controle de população, especulação financeira, instauração de um clima de medo na população, aí se incluindo guerras biológicas, supostamente inevitáveis etc etc etc. Situações e motivação não faltarão, não vale a pena ficar fazendo exercício de futurologia pessimista e inócua, e nem é de forma alguma o propósito deste texto.
O propósito aqui é o de - vivenciando a instauração desse clima de medo provocado pelo súbito aparecimento da gripe suína - refletir sobre a real natureza da lógica político-econômica sob a qual vivemos. O propósito é o de, lendo os textos abaixo e outros que circulam pela internet, começarmos a despertar para o tamanho e o grau da aberração à qual estamos cada vez mais nos sujeitando. A questão é unicamente a de reconhecermos, sem retoques e sem falsas esperanças, com o que e com quem estamos de fato lidando.

E, para quem acha que é paranóico ou futurismo inconseqüente refletir se empresas e governos poderão, um dia, pensar e decidir pela eliminação intencional e em grande escala de pessoas, recomenda-se a leitura de um livro da francesa Viviane Forrester,‘O horror econômico’, lançado em 1996. Lá, ainda nos inícios desse capitalismo desenfreado e delirante, a escritora francesa já alertava - numa narrativa sagaz, convincente e comovente - sobre até onde os comandantes do sistema estariam dispostos a chegar; mais interessante ainda, no livro Viviane tenta deslindar os complexos mecanismos pelos quais os comandantes justificariam, para os outros e para si próprios, a necessidade inevitável de se lançar mão do horror, sob qualquer uma de suas formas: bombas, guerras, doenças, aí se incluindo, é claro, algum tipo de vírus capaz de provocar... uma pandemia mortal de gripe.
Vale a pena conferir, e refletir com bastante atenção sobre a obra, com a vantagem do leitor já poder lançar um olhar retrospectivo, à distância, sobre o que tem acontecido nos últimos treze anos, desde que o livro foi lançado e decidir se alguns dos sinais de alerta da escritora francesa foram confirmados, ou se estão a se confirmar.

De qualquer forma, o propósito deste texto (e de resto, uma das principais propostas deste blogue) é de contribuir para entender que não podemos mais nos iludir com uma suposta e redentora autoconsciência da lógica capitalista, como se à medida que o sistema fosse afundando nas suas contradições, ele chegasse a um ponto em que atingiria o necessário e definitivo equilíbrio, benéfico para toda a humanidade, como se fosse capaz de um aprendizado moral e humanitário. Na verdade, o que nós temos percebido é exatamente o contrário, (apesar da aparente harmonia e modernidade que ilude, narcotiza a resigna a vasta maioria tanto das classes populares quanto das classes médias); assim, o que temos que entender, e assumir de uma vez por todas, é que cabe somente a nós reverter radicalmente a direção perigosa e insana para a qual a lógica do atual sistema está nos levando.

E não importa que ainda não tenhamos a fórmula, as receitas, não importa que ainda não tenhamos atraído as maiorias para as alternativas que nos são apresentadas. O que importa, num primeiro momento, é pelo menos estar alerta, lúcido, consciente da gravidade do processo pelo qual passamos. O que importa é saber o tamanho do adversário e a capacidade do seu mal, e não recuar perante esse horror em potencial. Sem medo e sem falsas esperanças.
Roberto Soares Coelho

05/05/2009

sobre a gripe suína

Três textos que dão o que pensar sobre o súbito aparecimento da gripe suína, que, agora, a OMS decidiu que se chama Gripe A, obviamente por pressão das grandes corporações do agronegócio.
Leia também Ensaio para um horror futuro?

O primeiro texto foi postado pela professora Graça Lobino, na lista de discusssão do COLEDUC-ES, Coletivo Educador Ambietal de Vitória, ES.

Sabia que o virus da gripe das aves foi descoberto há mais de 10 anos, no Vietnã e que, desde então, morreram apenas 100 pessoas EM TODO O MUNDO , EM TODOS ESTES ANOS ? (acho que a edição saiu antes do que anda ocorrendo nos EUA)
Sabia que os norte-americanos foram os que alertaram sobre a eficácia do TAMIFLU como preventivo e que o TAMILFLU apenas alivia alguns sintomas da gripe comum?

Sabia que a sua eficácia perante a gripe comum está questionada por grande parte da comunidade científica? Sabia que o governo brasileiro divulgou que tem estoque do remédio TAMIFLU para atender a 9 milhões de pessoas?
Sabia que, perante um SUPOSTO virus mutante como o H5N1, o TAMIFLU apenas aliviará a doença? Sabia que quem comercializa o TAMIFLU É O LABORATÓRIO ROCHE (de origem Suíça, mas cuja fábrica nos EUA é uma das maiores do mundo)?

Sabia que quem comprou a patente do TAMIFLU em 1996, foi a GILEAD SCIENCES INC, e que o Presidente da GILEAD SCIENCES INC, hoje o seu principal acionista é DONALD RUMSFELD, ex Secretário da Defesa dos EUA?
Sabia que a base do TAMIFLU é o anís estrelado e que a ROCHE foi quem ficou com 90% da produção mundial desta planta?
Sabia que as vendas do TAMIFLU passaram de 254 milhões de dólares em 2004 para 1000 milhões em 2005? Dá pra imaginar quantos milhões mais pode ganhar a ROCHE nos próximos meses, se continuar o negócio do medo?

Ou seja, o resumo da história é o seguinte:
Os amigos da América do Norte decidem que um fármaco como o TAMIFLU é a solução para uma pandemia que ainda não aconteceu.Que este fármaco não cura nem a gripe comum.O virus não afecta o ser humano em condições normais.Rumsfeld vende a patente do TAMILFLU à ROCHE e esta lhe paga uma fortuna.ROCHE adquire 90% da produção do anís estrelado, base do antivírico.Os governos de todo o mundo ameaçam com uma pandemia e compram da ROCHE quantidades absurdas do produto.

O QUE ESTÁ REALMENTE ACONTENCENDO???

Continuamos com o artigo A gripe suína e o monstruoso poder da indústria pecuária (Carta Maior), de Mike Davis, professor da Universidade da Califórnia (bem perto de onde sutgiu o vírus), do qual publicamos somente a introdução.

Em 1965, havia nos EUA 53 milhões de porcos espalhados entre mais de um milhão de granjas. Hoje, 65 milhões de porcos concentram-se em 65 mil instalações. Isso significou passar das antiquadas pocilgas a gigantescos infernos fecais nos quais, entre esterco e sob um calor sufocante, prontos a intercambiar agentes patógenos à velocidade de um raio, amontoam-se dezenas de milhares de animais com sistemas imunológicos debilitados. Cientistas advertem sobre o perigo das granjas industriais: a contínua circulação de vírus nestes ambientes aumenta as oportunidades de aparição de novos vírus mais eficientes na transmissão entre humanos. A análise é de Mike Davis


Já o terceiro texto foi publicado na Agência Chasque, por Cristóvão Feil, sociólogo e editor do blogue Diário Gauche

Porto Alegre (RS) - Hoje vamos comentar sobre a gripe que a mídia chama de suína, mas que a rigor é a doença originada do agronegócio internacional. Por isso, que o nome que se dá a coisas, objetos, projetos, episódios e até a doenças é muito importante. Vejam o caso dessa epidemia mundial de gripe viral. Estão chamando-a de forma imprópria de gripe suína. Nada mais ideológico; nada mais acobertador da verdade. O vírus dessa gripe se originou da combinação de múltiplos pedaços de ADN humanos, aviários e suínos o resultado é o vírus oportunista que acomete animais e imunodeprimidos, preferencialmente porcos criados comercialmente em situações inadequadas, não-naturais, intensivas, massivas e fruto de cruzamento clonados e que se alimentam de rações de origem transgênica, vítimas de cargas extraordinárias de antibióticos, drogas do crescimento e bombas químicas visando a precocidade e o anabolismo animal.

Especulações científicas indicam que o vírus dessa gripe teve origem nas granjas Carroll, no estado mexicano de Vera Cruz. A granja de suínos pertence ao poderoso grupo norte-americano Smithfield Foods, cuja sede mundial fica no estado de Virginia, nos Estados Unidos. A Smithfield Foods detém as marcas de alimentos industriais como Butterball, Farmland, John Morrell, Armour (que já teve frigorífico no Rio Grande do Sul e na Argentina), e Patrick Cudahy. Trata-se da maior empresa de clonagem e criação de suínos do mundo, com filiais em toda a América do Norte, na Europa e também na China. Desse jeito, pode-se ver que não é possível continuar chamando a gripe de suíno, pois se trata de um vírus oportunista que apenas valeu-se de condições biológicas ótimas propiciadas pela grande indústria farmacêutica, a grande indústria que lida com engenharia biogenética, os oligopólios de alimentos e seus satélites de grãos e sementes.

Todos esses setores contribuíram, de uma certa forma, com uma parcela para criar essa pandemia mundial de gripe viral. O nome da gripe, portanto, não é suína, o nome da gripe é gripe do agronegócio internacional, que precisa responder judicialmente o quanto antes de forma urgente pela sua ganância e irresponsabilidade com a saúde pública mundial.

Aliás, é muito estranho que justo no momento em que dois grandes laboratórios farmacêuticos mundiais que estavam a beira da falência, refiro-me aos laboratórios Roche e Glaxo, surja essa epidemia de gripes. É muito estranho tudo isso uma vez que são os fabricantes de medicamento que combatem a gripe, embora de forma paliativa. Pois nestes últimos dias as ações em Bolsas desses laboratórios subiram de forma exponencial, salvando-os da falência. Especula-se que a Roche e a Glaxo tenham introduzido o vírus da gripe nos criatórios de suínos no México e nos Estados Unidos. Ora, com a ganância do grande capital tudo é possível.

Pensem nisso, enquanto eu me despeço. Até a próxima.

o legado de augusto boal

Por uma dessas coincidências da vida - ou, no caso, da morte - o dramaturgo Augusto Boal faleceu exatamente na primera madrugada após o Primeiro de Maio, uma data que tem tudo a ver com a sua obra e com a sua própria vida. Afinal, Boal ficará na nossa memória como um desses artistas que se pautam pela tarefa de construir a ponte entre a arte e a vida, entre o teatro e ação política, ou transformadora (há um pouco mais sobre essa tarefa do artista, tão bem encarnada por Boal, no texto Resgate do primeiro de maio). Com uma pequena licença poética, é como se Boal houvesse esperado para poder viver o seu último Primeiro de Maio.
E de todas as inúmeras homenagens, memórias, análises e citações vindas a público por ocasião de sua morte, escolhemos publicar aqui um texto do próprio dramaturgo, que reflete bem a postura desse artista e resistente que foi Augusto Boal. O texto segue abaixo e foi postado por Fraga Ferri no 'Opiniões Cênicas", lista de discussão aqui de Vitória, da qual participam pessoas ligadas ao teatro e à arte em geral.
Compartilho o discurso proferido por Boal no dia 27 de Março, Dia do teatro; nosso desafio é transformar em ação seu legado, para verdadeiramente homenageá-lo (por Fraga Ferri, postado no 'Opiniões Cênicas', no dia 04/05/09).

"Todas as sociedades humanas são espetaculares no seu cotidiano, e produzem espetáculos em momentos especiais. São espetaculares como forma de organização social, e produzem espetáculos como este que vocês vieram ver.
Mesmo quando inconscientes, as relações humanas são estruturadas em forma teatral: o uso do espaço, a linguagem do corpo, a escolha das palavras e a modulação das vozes, o confronto de ideias e paixões, tudo que fazemos no palco fazemos sempre em nossas vidas: nós somos teatro!
Não só casamentos e funerais são espetáculos, mas também os rituais cotidianos que, por sua familiaridade, não nos chegam à consciência. Não só pompas, mas também o café da manhã e os bons-dias, tímidos namoros e grandes conflitos passionais, uma sessão do Senado ou uma reunião diplomática --tudo é teatro.
Uma das principais funções da nossa arte é tornar conscientes esses espetáculos da vida diária onde os atores são os próprios espectadores, o palco é a plateia e a plateia, palco. Somos todos artistas: fazendo teatro, aprendemos a ver aquilo que nos salta aos olhos, mas que somos incapazes de ver tão habituados estamos apenas a olhar. O que nos é familiar torna-se invisível: fazer teatro, ao contrário, ilumina o palco da nossa vida cotidiana.
Em setembro do ano passado fomos surpreendidos por uma revelação teatral: nós, que pensávamos viver em um mundo seguro apesar das guerras, genocídios, hecatombes e torturas que aconteciam, sim, mas longe de nós em países distantes e selvagens, nós vivíamos seguros com nosso dinheiro guardado em um banco respeitável ou nas mãos de um honesto corretor da Bolsa --nós fomos informados de que esse dinheiro não existia, era virtual, feia ficção de alguns economistas que não eram ficção, nem eram seguros, nem respeitáveis. Tudo não passava de mau teatro com triste enredo, onde poucos ganhavam muito e muitos perdiam tudo. Políticos dos países ricos fecharam-se em reuniões secretas e de lá saíram com soluções mágicas. Nós, vítimas de suas decisões, continuamos espectadores sentados na última fila das galerias.
Vinte anos atrás, eu dirigi Fedra de Racine, no Rio de Janeiro. O cenário era pobre; no chão, peles de vaca; em volta, bambus. Antes de começar o espetáculo, eu dizia aos meus atores: - 'Agora acabou a ficção que fazemos no dia-a-dia. Quando cruzarem esses bambus, lá no palco, nenhum de vocês tem o direito de mentir. Teatro é a Verdade Escondida'.
Vendo o mundo além das aparências, vemos opressores e oprimidos em todas as sociedades, etnias, gêneros, classes e castas, vemos o mundo injusto e cruel. Temos a obrigação de inventar outro mundo porque sabemos que outro mundo é possível. Mas cabe a nós construí-lo com nossas mãos entrando em cena, no palco e na vida.
Assistam ao espetáculo que vai começar; depois, em suas casas com seus amigos, façam suas peças vocês mesmos e vejam o que jamais puderam ver: aquilo que salta aos olhos. Teatro não pode ser apenas um evento --é forma de vida!
Atores somos todos nós, e cidadão não é aquele que vive em sociedade: é aquele que a transforma!"
(Augusto Boal)
Vale ainda dar uma passada pela Carta Maior e ler o texto de Kil Abreu, para se conhecer um pouco mais da vida eobra de Boal; abaixo segue uma introdução ao artigo.
O filho do padeiro e a revolução
Em uma época na qual a arte se identifica e se organiza em tendências de temporada, será cada vez mais raro encontrar um artista cuja tendência radical na direção da justiça é obra de uma vida inteira. Augusto Boal construiu uma carreira pontuada muitas vezes por lances decisivos, não apenas pessoalmente, mas para a história do teatro brasileiro. Por meio de sua obra, o andar de baixo finalmente vem à luz e personagens como operários, cangaceiros e jogadores de times de várzea ganham o palco. O artigo é de Kil Abreu.
De resto, saudações poéticas e libertárias, Augusto Boal, você cumpriu à altura a sua tarefa!
Roberto Soares Coelho