19/02/2009

fotopoema: advento


pequena pedra
no verde vê.

...água...

paredão de pedra
na névoa verte.

...água...

pedra cá pede.
pedra lá perde.

...água...

prece à.
pressa da...

...água...

poema: roberto soares
fotografia: roberto soares - santana do paraíso, vale do aço, minas

fotopoema: casarão

no corredor o vai vem das
saias onde eu me
agarrei

no quintal o fantasma da
mangueira

no canto da sala a cadeira da minha
avó onde um dia
a dor me
esperará



mariana botelho

(fotografia: casa em padre paraíso, vale do jequitinhonha, minas - acervo da biblioteca municipal da cidade)

matinal

mapear os trigais da
pele

saber-lhe o cheiro de
terra o intenso
sabor de
chuva

colher com discreta
violência o primeiro
silêncio do
dia

mariana botelho

afinação

há que se aprender a tirar silêncio
das coisas

quando uma coisa produz silêncio
ela está
pronta
mariana botelho

Convocatória Libertária!

Os políticos e jornalistas ridicularizam nosso movimento, tratando de impor a ele a sua própria carência de racionalidade. Segundo eles, nos rebelamos porque nosso governo é corrupto, ou porque gostaríamos de ter acesso a mais dinheiro, mais emprego. Arrasamos os bancos porque reconhecemos o dinheiro como causa central de nossas aflições; se quebramos as luzes das vitrines não é porque a vida seja cara, senão porque a mercadoria nos impede de viver a qualquer preço. Se atacamos a escória policial, não é só em vingança por nossos companheiros mortos, senão porque entre este mundo e o que desejamos sempre se supõe existir um obstáculo.
O manifesto abaixo foi elaborado e divulgado por um dos grupos que participaram, e participam, das revoltas populares e anarquistas que vem sacudindo a Grécia desde Dezembro de 2008, e que se espalhou, com menos intensidade, por outros países da Europa. Mais textos sobre o moviento libertário, clique aqui
Convocação para uma nova internacional
Sabemos que é chegado o momento de pensar estrategicamente. Neste momento tão importante sabemos que a condição indispensável de uma insurreição vitoriosa é que ela se estenda, ao menos, em nível europeu. Nos últimos anos temos visto e temos aprendido: as contra-cúpulas pelo mundo, os distúrbios estudantis e nos subúrbios da França, o movimento anti-TAV na Itália, a Comuna de Oaxaca, os distúrbios de Montreal, a agressiva defesa do Ungdomshuset em Copenhague, os distúrbios contra a Convenção Nacional Republicana nos Estados Unidos, e a lista continua.
Nascidos na catástrofe, somos os filhos de una crise global: política, social, econômica e ecológica. Sabemos que este mundo é um caldeirão sem saída. Há que se estar louco para agarrar-se a suas ruínas. Deve ser concertado para auto organizar-se.
Há uma obviedade na recusa total aos partidos e organizações políticas; são parte do velho mundo. Somos os filhos malcriados desta sociedade e não queremos nada dela. Esse é o pecado que nunca nos perdoarão. Atrás das máscaras negras, somos vossos filhos. E estamos nos organizando.
Não nos esforçaríamos tanto em destruir o material deste mundo, seus bancos, seus supermercados, suas delegacias, se não soubéssemos que ao mesmo tempo socávamos sua metafísica, seus ideais, suas idéias e sua lógica.
Os meios de comunicação descreveram todo o ocorrido nas semanas passadas como uma expressão de niilismo. O que não entendem é que no processo de assalto e assédio a sua realidade, temos experimentado uma forma de comunidade superior, de divisão, uma forma superior de organização alegre e espontânea que estabelece a base de um mundo distinto.
Qualquer um poderia dizer que nossa revolta encontra seu próprio fim na medida em que se limita a destruição. Isto seria certo no caso de que junto aos enfrentamentos nas ruas, não houvéssemos estabelecido a necessária organização que requer um movimento a longo prazo: cantinas providas por saques regulares, enfermarias para curar aos nossos feridos, os meios para imprimir nossos próprios jornais, nossa própria rádio. A medida que liberamos território do império do Estado e sua polícia, devemos ocupá-lo, preenchê-lo e transformar seus usos de maneira que sirvam ao movimento. Deste modo, o movimento nunca para de crescer.
Por toda Europa, os governos tremem. Asseguramos que o que mais temem não é que se reproduzam os distúrbios locais senão a possibilidade real de que a juventude ocidental encontre suas causas comuns e se levante como uma só para dar a esta sociedade seu golpe final.
Esta convocação vai dirigida a todos que queiram escutá-la:
Desde Berlim a Madri, de Londres a Tarnac, tudo é possível.
A solidariedade deve transformar-se em cumplicidade. Os enfrentamentos devem expandir-se. Devem declarar-se as comunas.
Desta forma, a situação nunca retornará à normalidade. Desta maneira as idéias e práticas que nos unem serão laços reais.
Deste modo seremos ingovernáveis.
Uma saudação revolucionária aos companheiros de todo o mundo. Aos detidos, os libertaremos!

Transcrito de http://anarkopagina.org/noticias/grecia.nova.internacional.html

18/02/2009

flecheira libertária I

flechadas nas couraças da ordem
flecheira - substantivo feminino; pequena abertura nas muralhas, pela qual se lançavam setas contra os inimigos ou sitiantes; frecheira, frecheiro, seteira (dcionário Houaiss)
"Flecheira Libertária" é uma seção do endereço libertário nu-sol. É um espaço de onde são lançadas flechadas certeiras e cortantes contra as tribos do senso comum ou contra os mecanismos de domesticação e captura de nossa liberdade. É uma abertura, um buraco nas muralhas da engrenagem e na nossa tendência para a aceitação da ordem, nossa necessidade inconsciente de se entregar a uma leitura sempre tranquilizadora do mundo e da história, mesmo que essa leitura tenha o máximo cuidado para se fazer transformadora, ou simplesmente crítica e lúcida.
Flechadas que, geralmente através de um ou dois parágrafos, atingem em cheio e despertam para o risco de não nos aquietarmos nas certezas estabelecidas, ainda que sejam aquelas mais dura, honesta e lucidamente conquistadas. Vale a pena ficar na linha de tiro dessas flecheiras, mesmo que seja só pra acompanhar o seu ousado e inusitado percurso.
Selecionamos algumas 'Flecheiras' com mais atualidade e concisão. Começamos pela edição nº 90, já que trata de um tema recorrente: flechadas que buscam atingir exatamente a complexa realidade das escolas e das revoltas juvenis. A seguir, outras edições, que falam da crise capitalista, do nadador Michael Pelps e seu baseado e terminamos com um retrato ácido, embora um tanto caricatural, da forma como o cotidiano sas dondocas e peruas dos 'financistas' foi 'afetado' pela crise.
Subindo no telhado
Numa escola da cidade de São Paulo, alguns estudantes subiram no
telhado, arremessaram telhas e a polícia desceu o cacete.
Especialistas, jornalistas e autoridades falam em punição e
reformas: expressão da guerra em torno dos resíduos de
instituições disciplinares. Aqui e ali a acomodação desse embate
se traduz numa nova institucionalização, que leva o nome de escola
democrática para as escolas preferenciais dos governos, e noutros
casos a agenciamentos de guetos e miséria cultural nada incomum em
grandes cidades de países desenvolvidos. No entanto, onde está a
coragem dos estudantes diante da urgência em abolir a escola?
Vã escola
As garotas brigam. Motivo: uma delas é do bairro vizinho. Os alunos se divertem e se dividem em bandos, bondes, famílias, e demais nomenclaturas conservadoras que reforçam identidades e
comunidades. Amam a merda em que vivem. Não querem ultrapassá-la, mas governá-la. Detonam o espaço da escola; são aviltados pela polícia; explodem. Já vimos esse filme norte-americano, funcionando tanto para disseminar valores punitivos como a vã esperança no professor paciente e bonzinho capaz de normalizar a ortopedia escolar.
Se fosse ...If e Zero de conduta
O tumulto não anunciou demolições inventivas dos estudantes como as expressas em filmes libertários como 'If' e 'Zero de Conduta' (viram? não?). Ao contrário, estes alunos pretendem dominar as escolas com táticas similares às do PCC e CV. E os professores, amontoados em procedimentos, sob rebaixados salários e precária formação clientelista no sistema de ensino superior, transformam-se de temidas autoridades punitivas em alvos da força transbordante de alunos reativos e violentos.
Eu não agüento mais!
(...) Será que esses jovens expressam uma saudável ânsia em enterrar algo que há muito está morto e podre?
O que você está fazendo de si?
Os estudantes, interessados na potência da vida, querem demolir a escola: abandonam o prédio ou ignoram seus comandos, não se deixam apanhar, desfiguram. Os alunos assimilam as violências de pais e autoridades, se integram no sistema de castigos e almejam ser algozes.('Flecheira Libertária' 90, de 18/11/2008)
“ Respire! Sinta o hálito do mundo em sua pele! Aproveite o dia! Respire! Respire!” (hakim bey)
Obrigatoriedades
Um menino vivo de 6 anos berra, grita, esperneia ao ser obrigado a entrar na sala de aula. Uma funcionária da escola corre até ele e tenta convencê-lo em vão. Ele se mostra irredutível. Ela, então, escondida da funcionária superior o convence a ficar no corredor próximo de sua mesa, lhe dá papel para desenhar e inicia uma conversa. Ele, sem meias palavras, diz que não quer estar na escola e que está imaginando uma menina linda em um parque de diversões. A funcionária sugere que ele desenhe o parque. Ele se nega e diz não poder desenhar. Ela lhe pergunta por que? Afinal ele não está também no parque? Ele sério se volta e encerra a conversa ao dizer: Não, não estou lá, porque eu estou aqui.(Flecheira 85, 14/10/08)
Capitalismo e morte!
Hades. É a tal da crise recorrente do capitalismo. É uma nova oscilação em direção a um novo modo de dar continuidade ao mercado capitalista com mais ou menos Estado. Mas sempre com Estado para repassar encargos, taxar impostos, proteger mercadorias, acolher negociatas, cobrir as apostas, os riscos e a liberdade dos capitalistas com o dinheiro seqüestrado dos cidadãos e a dívida pública. A mesma velha coisa renovada: o capitalismo é uma multidão de miseráveis, de serviçais aos superiores, às máquinas, aos programas, à morte. Uma coisa é inédita: o capitalismo não é mais planetário, é sideral. Ele, o Estado e o patriarca vivem do amor à obediência, da morte entre os súditos, das instituições para matar.
Mercado, anarquia e liberdade
Moiras. Quer liberdade de mercado? Faça anarquia, autogestão, invente, viva sem Estado, desobedeça, seja indisciplinado. Não queira saber tudo, mandar, vigiar, persuadir, amar o consenso. Aproveite a democracia para viver mais livre. Esqueça a utopia; faça já. Não seja prisioneiro do amor; não tente ser esperto; liberte-se do segredo e do controle que dão poderes aos pais, burocratas, encarceradores, governantes... Deixe de pensar neles ou por eles, nessa mesmice, numa identidade. Note os novos espaços de liberdades e não tente governá-los. Desgoverne-se. Lide com direitos livres de deveres. Não dê as costas aos inimigos, contorne os lisonjeadores, não tente ser esperto, evite a cólera, experimente, entre. (Flecheira 85, 21/10/08)
"Revolta? Como? Irromper fora da prisão, do teatro, para dentro do mundo" (julian beck)

A delação transparente
Ele foi o grande nome das Olimpíadas de 2008. Saudável, recordista, o grande fôlego, a maior velocidade na água, a elegância do nado, o preferido da mídia e das boas famílias. Apesar de tudo ele também é uma pessoa comum. Come, dorme, bebe, treina e às vezes mente. Isso é insuportável tanto para o delator, que o fotografa em festa, fumando maconha, quanto para a mídia, a federação e os patrocinadores irmanados na atual idiotia transterritorial. Ele foi suspenso por doping moral. Não serve mais aos Estados Unidos, aos bons cidadãos, aos tolerantes, aos responsáveis, aos empresários, aos adoradores de exemplos? Aplica-se a sanção: suspensão temporária. Depois virão mais arrependimentos e a dívida infinita.(Flecheira 97, 11/02)
I’ sorry
Esta é a frase que o nadador celestial profere dia e noite para se desculpar do uso festivo da sua maconha. O jovem nadador constata que é um produto valioso da eficiência individualista no capitalismo e se prepara para aceitar as punições. Os contratos não serão renovados sem pedidos de perdão eterno. Em breve, ele, rico e arrependido, se transformará em encenador de devoções religiosas e do bom-mocismo cidadão como já ocorreu com vários outros esportistas. Aprendeu que a ilegalidade impune e lucrativa se comete na surdina. I’ sorry, mesmo!(Flecheira 98, 18/02)
Capitalismo em crise: as dondocas top
Em Manhatan as dondocas-adornos de financistas de Wall-Street fundaram um grupo de apoio às suas colegas, o DABA (Namoradas de Banqueiros Anônimas) tipo A. A. , mas sem abrir mão do acesso restrito, é claro, para se solidarizarem e trocarem desabafos sobre a crise, lamentando “ de gastos em seus cartões de crédito” ou “ o sexo passou a ficar horrível!” ou “ estão entediadas”. Suas vidinhas de mulherzinhas seguem impecáveis.
as aspirantes
Em São Paulo, noivas e esposas de investidores bem sucedidos do mercado financeiro, que aspiram ser como as do top de Manhatan, comentam na coluna social como sofreram abalos indescritíveis, “ como ficar sem uma babá para o filho, que só dá para pensar em ter após ter feito o primeiro ou segundo milhão de dólares? E o que é pior como viver sem uma babá e uma enfermeira?” Rindo, começam “ a pensar em vender a mãe para recuperar investimentos...” Suas vidinhas de mulherzinha seguem incólumes.

e as periféricas
Numa roda de peruas classe média periféricas, que desejam um dia ascender a aspirantes e a top, uma delas diz às outras: “ não agüenta mais ter de vender tudo para pintar o cabelo, lembrando que seu ex-marido a alerta: por favor só não venda as crianças!” Ela, solícita, o tranqüiliza, dizendo que caso as venda, não as entregará. Os seus cabelos e a sua vidinha de mulherzinha seguem intactos.

Enquanto isso:
Uma enquete com jovens estudantes de Economia que acabam de ingressar na universidade, aponta que eles escolheram o curso porque “ trabalhar na área de investimento financeiro.” (Flecheira 98, 18/02)
“ Prefiro ser uma loba faminta a ser um cão gordo encoleirado.” (nise da silveira)

17/02/2009

os ingovernáveis deste mundo: anarquistas e libertários

De certa forma dialogando com a matéria Rumos do FSM, postada agora em fevereiro, DESVELAR publica abaixo trechos de manifestos, elaborados em 2001, e outros textos e endereços de caráter libertário. Mas não apenas com o objetivo de complementar as abordagens sobre o FSM, o foco aqui não é um contraponto ou debate sobre o Fórum, e sim divulgar e contribuir para o próprio movimento libertário, que é uma das propostas deste blog. Na verdade, já vinha há algum tempo preparando uma seleção de textos de natureza libertária. São matérias extraídas de publicações anarquistas ou independentes - alguns endereços estão na lateral, na seção “pontes - dia-a-dia”.
Claro que não há aqui a pretensão de esgotar, em meia dúzia de textos, a história, as idéias, as diferenças e singularidades do anarquismo em relação ao socialismo, e muitas outras questões. Afinal, a luta libertária tem uma trajetória longa, rica e extremamente combativa, trajetória essa que inclusive vem demonstrando sua atualidade nas revoltas populares da Grécia, agora em dezembro de 2008, nas quais os anarquistas têm tido uma combativa e destacada presença. Dessa forma, optei por publicar aos poucos, em cada mês, o material teórico, as notícias e os manifestos oriundos do movimento libertário, nos seus diversos movimentos e correntes, ou seja, pretende-se neste blog uma continuidade e uma constância desse diálogo com o movimento libertário.
Mas voltar ao FSM é uma boa maneira de começar a conhecer as propostas do movimento libertário. De um lado, intelectuais e militantes de movimentos sociais, partidos e governos de esquerda, fazem exigências e propostas à direção do Fórum Social Mundial, para que esse de fato avance na busca conjunta de alternativas concretas para a superação do capitalismo. Principalmente neste momento de abalos nas estruturas do sistema, quando podem se abrir oportunidades reais, não de uma ruptura súbita e de uma transformação total em nível global, mas ao menos para se consolidarem governos e formas de organização alternativos, de caráter mais popular, democrático e igualitário, e menos individualistas e agressores do homem e da natureza.
Já quanto aos militantes e expoentes do movimento anarquista e libertário, vão numa direção diferente as suas críticas ao FSM, tanto em termos de apontar caminhos para o Fórum quanto para a superação do modelo econômico que domina as nossas vidas. Os movimentos libertários alertavam, já desde os inícios do Fórum, em 2001, para o perigo da “captura”. Ou seja, o advento de um espaço global como o Fórum Social Mundial teria sido, na verdade, uma forma de neutralizar, de capturar a revolta e o enfrentamento ao capitalismo (e à sua versão mais recente, o neoliberalismo), enfrentamento esse que se iniciou através das grandes manifestações de rua em Seattle, em Gênova, em Bolonha, em Washington e inúmeras outras cidades, por ocasião dos encontros do G8, do Fórum de Davos, do Banco Mundial e de outras instâncias representativas do neoliberalismo. Na verdade, anarquistas e libertários colocam-se nas origens do próprio Fórum Social Mundial, reivindicando para eles uma atuação combativa e fundamental nessas mesmas articulações e manifestações de rua, que inauguraram uma contestação mais consolidada ao capitalismo neoliberal.
Nessa crítica radical ao FSM, o risco estaria, então, na perda da espontaneidade e da horizontalidade dos protestos e dos esforços que buscam construir um mundo diferente. Pois, para o anarquismo, toda ação realmente revolucionária e transformadora do mundo e da vida não pode ser limitada, não pode se dar nos estreitos limites dos poderes instituídos, tais como partidos políticos, governos, sindicatos, poderes que se caracterizam pela hierarquia, pela autoridade e pela verticalidade de comando, mesmo que se tratem de poderes com propostas esquerdistas, socialistas ou progressistas. Pois, a partir do momento em que as forças revolucionárias institucionalizam-se através do poder do Estado, o seu ímpeto transformador, igualitário e criativo é neutralizado, é contaminado pelas práticas e valores da velha ordem, mantida por aqueles que deveriam ser combatidos e superados pela historia.
Desse ponto de vista, os anarquistas entendem que, senão todas, a maioria das forças presentes no FSM - ONGs, movimentos sociais, partidos e representantes de governos progressistas - fariam parte do mesmo processo de captura da espontaneidade e da verdadeira transformação, a partir do momento em que essas próprias forças também já teriam sido capturadas, neutralizadas pelas práticas, valores e visões institucionais, verticais e hierarquizadas.
Para uma melhor compreensão, publicamos aqui trechos de manifestos de dois coletivos libertários. Vale informar que os textos são do ano de 2001 e 2002. A escolha deve-se não só à clareza, firmeza e atualidade de suas posições e análises, como também a uma espécie de resgate histórico, de mostrar que já existia uma produção teórica anterior ao próprio FSM, enfim, todo um acúmulo em termos de enfrentamento do neoliberalismo. Independente de se concordar ou não com as posições expressas nos textos, conhecê-los é um exercício de inquietação intelectual e abertura àqueles que pensam diferente, e que manifestam essa diferença com coragem e lucidez.
E, para quem se interessar, seguem outros textos e páginas, diretamente nos endereços de origem:
http://ervadaninha.sarava.org/pagina2.html - espaço anarquista com conteúdo abrangente e linguagem incisiva.
http://anarkopagina.org/noticias/grecia.nova.internacional.html - manifesto anarquista por uma nova internacional.
http://diplo.uol.com.br/2009-01,a2732 - embora não focado no movimento libertário, o texto traz infomações e análises do Le Monde Diplomatique sobre a participação dos anarquistas nas recentes revoltas populares na Grécia.
http://grecia-libertaria.blogspot.com/ - divulga o movimento libertário na Grécia, bem antes das revoltas de Dezembro de 2008 (em espanhol).
http://www.nu-sol.org/links/links.php?tipo=1 - página do nu-sol que remete a vários outros endereços.

dois manifestos libertários

Os textos abaixo são fragmentos de manifestações de coletivos anarquistas e libertários expondo os motivos de sua recusa em participar do FSM, já em 2001. São um complemento da matéria os ingovernáveis, publicada este mês aqui no DESVELAR, e a íntegra dos textos está em http://www.geocities.com/comunistasdeconselhos/fsm.htm.

FSM 2001
Não iremos ao Forum "Social" Mundial! E não estamos sós!

Companheir@s
Nós não iremos ao autoproclamado Fórum Social Mundial. Em nosso coletivo, há um "consenso" de que tal Forum é a tentativa dos setores da esquerda tradicional, a velha esquerda estatista e burocrática, de apropriar-se da luta contra a "globalização" capitalista numa perspectiva nacional - desenvolvmentista. É a esquerda que quer o capitalismo "humanizado"; que quer "socializar" a mercadoria; que quer governar o Estado. Não é à toa que se realizará em Porto Alegre, escolhida, aliás, como capital permanente do evento: é o laboratório dos governos da esquerda oficial em nosso país, com o PT à frente.

O Forum é uma articulação que vai desde a Conferência dos Bispos Católicos (CNBB), passando pela degradada CUT, os partidos da esquerda institucional, o MST, até organizações empresariais.

A estrutura do Forum é hierárquica, verticalizada, como sói de ser esses eventos da esquerda burocrática. Palestrantes/conferencistas, de um lado, e, de outro, público espectador. Não tem nada a ver com as nossas experiências horizontais, democráticas, autônomas, organizadas desde baixo, como no N30, M1, S26 e assim por diante. Aliás, é preciso que se diga: nenhum dos grupos que estão organizando o FSM participou de nenhum dos dias de ação global contra o capitalismo!!!! Eles não se sentiriam bem: o que eles sabem fazer são os velhos congressos de "representantes" que não representam ninguém, manifestações que mais parecem "showmícios", campanhas eleitorais mais estetizadas do que as dos partidos tradicionais da burguesia...

O que eles querem com esse Fórum?

1. Apropriar-se de uma luta da qual não participam: os dias de ação global conta o capitalismo;

2. Absorver a crítica anticapitalista numa elaboração de um projeto de administração capitalista, cujo centro a ilusão de uma política de "desenvolvimento nacional";

3. Catapultar-se eleitoralmente como alternativa de governo.

Nós não vamos ao Forum Social Mundial. Nem nós, nem a grande maioria (se não a totalidade) dos grupos que vêm participando das lutas em nosso país contra a farsa dos 500 anos, das ações globais, que rejeitaram a burocratização e a partidarização do II Encontro Americano pela Humanidade e contra o Neoliberalismo...
Coletivo Contra-a-corrente, 6 de Dezembro de 2000

FSM 2002 - A re-edição do espaço concedido das cúpulas, da recaptura e do falso diálogo

Mais uma vez, milhares de todos os continentes acorrerão ao FSM: governos de esquerda, entidades clericais, ONGs, intelectuais, catedráticos, estudantes, grupelhos ideológicos detentores de toda verdade ou de humildes meias-verdades, políticos profissionais, sindicalistas, ou seja, representantes e especialistas de toda espécie; igualmente, gente desavisada e curiosa, muitos turistas e até mesmo indivíduos e coletivos revolucionários, organizados ou desorganizados, alguns honestos e de boas intenções. De fato, o arco-íris perde feio para a infinidade de cores que vai se estabelecer em Porto Alegre, em fins de janeiro e início de fevereiro de 2002. Perde feio exatamente ali onde a diversidade de cores do arco-íris é uma diversidade real, ao passo que o falso arco-íris do FSM é o inútil arremedo da diversidade que o mercado e os estados conseguem produzir quando para isso se esforçam.
Mas até já podemos antever os resultados desse espetáculo: a promessa de lutar contra e em prol de muitas coisas. Lutar contra o domínio do capital especulativo sobre o produtivo, contra o modelo econômico excludente (mas nunca contra o próprio capital e seus estados); reivindicar por mais verbas sociais, pela taxação do capital especulativo, pela participação popular, cooperação e autogestão local, enfim, por medidas concretas de incremento da cidadania plena, num esforço em desenvolver o protagonismo da sociedade civil, ampliar e democratizar ainda mais os programas e as finalidades das instituições globais de crédito financeiro para projetos sociais, esforços há muito sugeridos pelos setores hoje hegemônicos do capital transnacional, através do Banco Mundial, do Banco Interamericano de Desenvolvimento e outros instrumentos. Os protagonistas do FSM lutarão por muitas coisas, desde que pelo bem do estado democrático de direito e por um bom desenvolvimento capitalista com distribuição de renda e justiça social - como se isso fosse possível sob o domínio mundializado do mercado e do sistema de estados - sempre sem pôr em xeque o próprio desenvolvimento capitalista.
Num jogo de cartas marcadas, o único protagonista real é quem as dá; @s demais jogador@s são apenas coadjuvantes que, conscientes ou ludibriad@s, colorem e ajudam a corroborar a farsa. É desse modo que o FSM se constitui como um espaço das cúpulas, dos dirigentes e chefes da sociedade civil burguesa, para os quais a condição de assalariad@ é o objetivo essencial a ser atingido, desde que com bom salário e capacidade de consumo. Eis a garantia básica de que haverá sempre eleitores e bases políticas, sindicais, etc para garantir a fortaleza e a legitimidade das instituições democráticas e da representação e o poder que necessariamente elas comportam. O FSM é um paraíso dos especialistas de esquerda, um exemplar exercício das separações entre os que pensam e os que fazem, os que falam e os que assistem e/ou ouvem, os que decidem e os que executam. A passividade que concede fôlego ao sistema é fortalecida no FSM através de suas palestras e pequenos arranjos cosméticos, como as oficinas e os acampamentos que tentam seduzir a juventude e muit@s anticapitalistas. Estes acabam, no final das contas, envolvid@s como massa manobrada ou, no máximo, como vanguarda crítica, pois têm seus discursos e iniciativas autônomas engolidas por uma supremacia oficial que só poderia ser neutralizada e destruída através de espaços que lhes fossem antagônicos desde a raiz e em tudo.
Um espetáculo como o FSM é um momento central do sistema, pois tem o objetivo de forjar um pacto social democrático que ponha rédeas no movimento contestatório mundial, sob as mãos dos fiéis ideólogos e representantes da esquerda do capital. Como alternativa de administração do sistema mercantil-estatal, com relativa influência nos meios sociais de resistência cotidiana, a esquerda do capital procura, desesperada, recuperar para a ordem as lutas e organizações autônomas d@s de baixo para enquadrá-las nesse pacto. Desde Seattle e, principalmente, após as insurreições do Equador, da Bolívia; desde Gênova, e mais recentemente na insurgência d@s proletarizad@s que vivem sob e contra o Estado argentino, a esquerda do capital busca desesperadamente implementar esse projeto de despotencialização e captura da autonomia. Eis a verdadeira intenção do FSM: colocar a rebeldia sob o domínio institucional, intenção esta que ultimamente tem tomado mais fôlego devido ao clima de "guerra e anti-terrorismo", fato que exigiria mais moderação, cautela e sapiência dos "movimentos antiglobalização", segundo os hipócritas ideólogos de plantão.
Não pode haver no FSM lugar para a horizontalidade das relações diretas. Antes, o FSM credencia-se como espaço de cúpula dos agentes do capital corruptores das resistências parciais cotidianas. Enquanto os agentes hegemônicos do FSM estimulam na vida cotidiana as hierarquias próprias do mundo da mercadoria, as resistências autênticas e as lutas sociais perdem cada vez mais a capacidade de se desenvolver como iniciativas autônomas, diretas e solidárias, como uma negação prática do capital capaz de se contrapor aos ataques diretos ou sinuosos que este realiza com a finalidade de impedir uma ação coletiva anti-mercado e anti-Estado.
Da mesma forma que o esforço das demais forças da ordem democrática do capital, o FSM estabelece, através do falso diálogo, sutilmente, a conservação das hierarquias. O falso diálogo se dá antes e além do próprio estabelecimento do FSM, já que a existência de um espetáculo como o Fórum só é possível a partir do espetáculo cotidianamente vivido por muitas organizações e lutas de resistência; basta observarmos como os valores e métodos da ordem estato-mercantil, como a tutela pelas lideranças, o ativismo, o autoritarismo, o verticalismo organizativo, o machismo, a homofobia etc. estão arraigadas em várias destas experiências de "resistência". Não podemos falar de relações diretas, de horizontalidade e de diálogo prático em espaços que não estejam fundados na socialização direta de experiências efetivas de luta contra o capital.
Além dos seus promotores, também irão ao Fórum os autoproclamados revolucionários de várias gradações vanguardistas, dos leninistas e guevaristas aos troskos e maoístas; ali, irão para espernear, denunciar e demarcar, buscando obter ganhos à sua posição, depois de terem devidamente esclarecido, com a ajuda da ideologia revolucionária de suas bíblias, os "iludidos", mas "honestos" e "combativos" transeuntes do FSM. Entretanto, o Fórum precisa ser criticado não essencialmente devido ao reformismo da esquerda brasileira, de ATTAC & Cia., suas hegemonias, suas políticas e seus programas burgueses, mas sobretudo porque, independentemente de quem o coordene ou o conduza, o FSM é um espaço baseado na sociabilidade burguesa, com suas representações, separações e passividade, fundado no falso diálogo e na falsa diversidade e na tolerância próprias do mundo burguês democrático.
Como parte do espetáculo, os grupelhos autoritários candidatos à vanguarda radicalizada são desde sempre também parte do espírito democrático do Fórum e não por acaso tão estatistas quanto os seus promotores, embora em defesa de um suposto "estado revolucionário". Todos fazem parte do espetáculo porque afinal é necessário ao espírito burguês que haja no Fórum, como no parlamento ou nas entidades sindicais, as oposições, as vozes "radicais" dissonantes participando dos momentos "horizontais" - e, de preferência, juvenis - do evento. Afinal, "outro mundo é possível" e tanto mais será "outro" quanto mais colorido for o espetáculo do espaço consentido de Porto Alegre. Que o mesmo - o capital e o estado - seja aquilo que se afirma por baixo desse falsamente outro, é coisa já dita e sabida... (...)
Esta nota é um esforço inicial de contraposição ao FSM, esforço ao qual chamamos que tant@s outr@s compas possam somar-se, assinando e multiplicando a sua divulgação massiva, antes, durante e após o FSM.
Um abraço forte!

Janeiro de 2002, sob os sons e as cores da insurreição d@s proletarizad@s contra o estado argentino.

Coletivo Acrático Proposta (Belo Horizonte), Proletarizad@s contra a corrente (Fortaleza), alguns anticapitalistas do Rio Grande Sul e do Ceará, Moésio Rebouças (São Paulo), Anselmo Malaquias, Tomás Bueno (Pirenópolis) vivendo sob e contra o estado brasileiro.

11/02/2009

A ex-República das Bananas não se curva mais para as Romas do mundo

Em breve haverá o desfecho do julgamento do caso Cesare Battisti, pelo STF
Esse é outro assunto que tem ocupado bastante os meios de comunicação: a decisão do Governo Lula em dar refúgio político a Cesare Battisti, militante da esquerda radical dos anos 70 na Itália, acusado de ter cometido quatro assassinatos. A questão que preocupa os juristas é a de saber se o Poder Executivo, através do Ministro de Justiça, estaria constitucionalmente autorizado a conceder refúgio político no caso de o STF decidir legalmente pela extradição, no julgamento que deverá terminar em breve.
Já a mídia tem abordado mais a questão política e moral, ou seja, tem o governo brasileiro o direito de dar refúgio a um suposto assassino, a um homem já condenado por assassinato pelas leis de seu país? Faz-se referência aos sentimentos dos familiares da vítimas mortas, jornalistas e cientistas políticos lembram a falta de diplomacia ou de consideração para com os italianos, censura-se o nosso governo por ignorar decisões judiciais de outro país. Já os defensores do governo brasileiro apontam vícios no julgamento de Battisti, cerceamento de defesa e uma suposta perseguição política, promovida pelo governo direitista de Silvio Berlusconi.
Sem entrar em tais polêmicas, e independente do desfecho que a questão terá , o que se deve registrar é a inquestionável coragem do governo brasileiro em tomar uma decisão que considerou como correta e necessária, no aspecto político, moral e humanitário. Deve-se registrar a sua dignidade em não aceitar pressões e ameaças de um governo do chamado “primeiro mundo’, mantendo com lucidez e serenidade a posição tomada.
Tudo bem que os mais à direita não aceitem ver gente do povo aprendendo - com todos os erros e acertos a quem tem direito - a administrar um país tão complexo e promissor como o Brasil, e que os mais à esquerda apontem as claras limitações de um governo que poderia avançar mais na mobilização popular e no enfrentamento com as forças do atraso; mas uma coisa não podemos negar: nessa questão de Battisti, e respeitando a dor de terceiros, lava a nossa alma constatar que tanto quanto qualquer outro país do chamado “primeiro mundo”, um país de “terceiro mundo’ também pode ter soberania e autonomia. Basta que ele seja dirigido com coragem e dignidade. Com certeza, um suposto governo Serra, Aécio ou similares não agiria com a mesma soberania, não se preocuparia em fazer o pais ser realmente respeitado.
O governo Lula dessa vez se redimiu de algumas de suas concessões e hesitações, aproximando-se um pouco mais de outros governos da América Latina, que fazem valer a voz de sua soberania e da autonomia de seus povos perante a arrogância de muitos governos e dirigentes europeus e norte-americanos, que ainda imaginam que os povos de África, Ásia e America Latina ficarão eternamente submissos às suas diretrizes, pressões e padrões sociais e culturais.

(http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=4080) de Flávio Aguiar, colunista de Carta Maior, enfatiza um pouco mais esse aspecto das recorrentes tentativas de desqualificação do governo brasileiro por parte da imprensa, dessa vez a mídia agindo como se a atitude do Ministro Tarso Genro fosse algo inconsequente ou impensado, fosse um mero capricho de quem detém o poder ou fosse uma decisão baseada numa suposta amizade com o acusado Csare Battisti. A seguir, um trecho: “(...) O que se pode dizer depois de todo esse percurso é que pairam consistentes dúvidas sobre a lisura de tudo. E que num caso desses, o que se pode pregar, do ponto de vista da justiça, é o princípio do “in dubio pro reo”. Mas na imprensa conservadora vale o princípio segundo o qual “in dubio” ou “in certeza”, pau no governo Lula. Nessa ótica, até certo ponto, Battisti é irrelevante. O que importa é desqualificar o ministro (...)

Ainda sobre o caso Battisti, DESVELAR transcreve abaixo um texto bastante esclarecedor, com relação ao aspecto jurídico e político do processo, de autoria de Renato Simões.


BATTISTI E A UNIÃO DAS DIREITAS ÍTALO-BRASILEIRAS

Nos próximos dias, o Supremo Tribunal Federal se reunirá para decidir sobre o futuro de Cesare Battisti, cidadão italiano acusado de crimes políticos da luta armada dos chamados "anos de chumbo" em seu país, a quem o governo brasileiro concedeu, em decisão soberana, o status de refugiado político. Com a decisão adotada pelo Ministro Tarso Genro, o caminho do pedido de extradição de Cesare Battisti, preso desde 2007 em Brasília, deverá ter o caminho do arquivo. Deverá? Eis a questão que hoje movimenta animadas figuras expressivas do pensamento de direita dos dois países diretamente envolvidos – Itália e Brasil – e de toda a aldeia global.

A decisão do Supremo será tomada num contexto de franca ofensiva de comunicação dos reacionários dos dois países. A jurisprudência é clara, fixada em decisões anteriores do STF similares ao caso de Battisti, inclusive os que envolvem fugitivos da Justiça Italiana procurados ou condenados por ações armadas nos anos 70, quando a Corte brasileira negou os pedidos de extradição com fundamentos praticamente idênticos aos adotados pelo Ministro Genro em sua decisão atualmente tão contestada. Ela própria considerou constitucional dispositivos previstos na Lei 9.474/97, a mesma base utilizada para o parecer do Procurador Geral de Justiça em defesa do arquivamento do pedido de extradição movido pelo governo italiano contra Battisti, após a decisão soberana do governo brasileiro lhe concedendo o refúgio.

O que cria o suspense sobre a manifestação do Supremo é o contexto de luta política que se seguiu, tanto no plano interno quanto no internacional, contra a decisão de Tarso Genro, amparada em unânime e bem articulada grita dos meios de comunicação de massa dos dois países.
Sucessivos governos italianos assimilaram com aparente tranquilidade o asilo informal concedido a Battisti e outros participantes da luta armada na Itália pelo presidente François Mitterrand. Por mais de uma década, eles viveram em paz na França, ali constituíram família e desenvolveram atividades profissionais, sob a condição imposta pelo governo socialista que os acolhia de renúncia formal à luta armada. Battisti assinou tal declaração, casou-se, teve duas filhas, escreveu livros e construiu sua vida na França até que os ventos conservadores que varrem o Velho Continente levaram ao poder a direita francesa e Jacques Chirac lhes cassou o status conferido por Mitterrand. O mesmo não sucedeu desta feita.

Alguns "crimes" cometidos na decisão do Ministro da Justiça no caso Battisti açodaram a direita italiana em sua reação furiosa. Um deles foi a menção à violação aos direitos humanos pelo Estado Italiano, extrapolando as próprias leis de exceção editadas no período: "é público e incontroverso, igualmente, que os mecanismos de funcionamento da exceção operaram, na Itália, também fora das regras da própria excepcionalidade prevista em lei. Tragicamente, também no Estado requerente, no período dos fatos pertinentes para a consideração da condição de refugiado, ocorreram antes momentos da Historia em que o 'poder oculto' aparece nas sombras e nos porões, e então supera e excede a própria exceção legal. Nessas situações, é possível verificar flagrantes ilegitimidades em casos concretos, pois a emergência de um poder escondido 'é tanto mais potente quanto menos se deixa ver'. Isso é professado em nome da preservação do Estado contra os insurgentes, que não é menos ilegítima do que as ações sanguinárias dos insurgentes contra a ordem", afirma Genro em sua decisão (parágrafos 17 e 18).

Berlusconi e a direita italiana não gostaram de ver apenas o seu passado remexido. Ao analisar o pedido de Battisti, e fundamentar sua decisão igualmente na sua condição de perseguido e nos riscos à sua vida e integridade pessoal decorrentes da extradição solicitada pela Itália, o Ministro Genro também aponta elementos de continuidade entre a situação de exceção vivida nos anos 70 e a ofensiva da nova velha direita italiana de retomar os processos contra os militantes da luta armada daquele período. "Concluo entendendo, também, que o contexto em que ocorreram os delitos de homicídio imputados ao recorrente, as condições nas quais se desenrolaram os seus processos, a sua potencial impossibilidade de ampla defesa face à radicalização da situação política na Itália, no mínimo geram uma profunda dúvida sobre se o recorrente teve direito ao devido processo legal. Por consequência, há dúvida razoável sobre os fatos que, segundo o recorrente, fundamentam seu temor de perseguição", encerra Genro sua decisão (parágrafos 43 e 44).

Assim, o presidente espetaculoso da Itália, montado em sua coligação que integra todas as tonalidades do pensamento mais direitista de seu país, incluindo-se aí os neofascistas e racistas da Liga do Norte, e ainda respaldado pelos meios de comunicação de que é proprietário privado e dos meios de comunicação estatais sob seu comando, transformou o caso Battisti num elemento de "união nacional" e de legitimação do Estado Democrático de Direito italiano pretensamente atingido pela decisão do governo brasileiro.

A direita tupiniquim alvoroçada encontrou um mote para fustigar o governo Lula, no contexto de uma crise internacional que elevou ainda mais a popularidade do Presidente e do próprio governo a patamares recordes de mais de 80%. Alinharam-se assim os principais editorialistas dos jornais escritos e as redes de televisão no ataque à soberania brasileira, reproduzindo os argumentos fascistas de autoridades italianas que nos remetem à condição de República de Bananas a desafiar o berço do Direito e da Civilização Cristã Ocidental.

Nesta cruzada, direitas ítalo-brasileiras se juntaram, pressões diplomáticas injustificáveis foram adotadas na Itália e justificadas no Brasil, expressões preconceituosas e discriminatórias ofensivas contra o povo brasileiro foram veiculadas por meios impressos, rádio, TV e internet por uma direita sem bandeiras e sem outras perspectivas para o Brasil que não seja a submissão covarde aos ditames dos governos dos países que compõem o G-8, mesmo que econômica e politicamente decadentes, como é o caso da corte bufa de Berlusconi.
Vejamos como o STF resolverá o 'imbroglio'. Se manterá suas decisões anteriores, baseadas no direito e na Constituição brasileiras, ou se fará média com a mídia e os setores conservadores transnacionais em campanha para fazer de Battisti um instrumento da afirmação de sua prepotência e autoritarismo.

Renato Simões é conselheiro nacional do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH)

Balanço do Fórum e do outro mundo possível

Um balanço do FSM de Belém não deve ser feito em função de si mesmo. Ele não nasceu como um fim em si mesmo, mas como um instrumento de luta para a construção do “outro mundo possível”. Nesse sentido, qual o balanço que pode ser feito do FSM de Belém, do ponto de vista da construção desse “outro mundo”, que não é outro senão o de superação do neoliberalismo, de um mundo pósneoliberal?
Duas fotos são significativas dos dilemas do FSM: uma, a dos 5 presidentes que compareceram ao FSM – Evo, Rafael Correa, Hugo Chavez, Lugo e Lula -, de mãos dadas no alto; a outra, a fria e burocrática de representantes de ONGs brasileiras em entrevista anunciando o FSM. Na primeira, governos que, em distintos níveis, colocam em prática políticas que identificaram, desde o seu nascimento, o FSM: a Alba, o Banco do Sul, a prioridade das políticas sociais, a regulamentação da circulação do capital financeiro, a Operação Milagre, as campanhas que terminaram com analfabetismo na Venezuela e na Bolívia, a formação das primeiras gerações de médicos pobres no continente, pelas Escolas Latinoamericanas de Medicina, a Unasul, o Conselho Sulamericano de Segurança, o gasoduto continental, a Telesul – entre outras. A cara nova e vitoriosa do FSM, nos avanços da construção do posneoliberalismo na América Latina.
Na outra, ONGs, entidades cuja natureza é fortemente questionada, pelo seu caráter ambíguo de “não-governamentais”, pelo caráter nem sempre transparente dos seus financiamentos, das suas “parcerias”, dos mecanismos de ingresso e de escolha dos seus dirigentes – a ponto que, em países como a Bolivia e a Venezuela, entre outros, as ONGs se agrupam majoritamente na oposição de direita aos governos. Sua própria atuação no espaço que definem como “sociedade civil” só aumenta essas ambigüidades. Entidades que tiveram um papel importante no inicio do FSM, mas que monopolizaram sua direção, constituindo-se, de forma totalmente não democrática, como maioria no Secretariado original, deixando os movimentos sociais, amplamente representativos, como a CUT e o MST, em minoria.
A partir do momento em que a luta antineoliberal passou de sua fase defensiva à de disputa de hegemonia e construção de alternativas de governo, o FSM passou enfrentar o desafio de se manter ainda sob a direção de ONGs ou passar finalmente ao protagonismo dos movimentos sociais. No FSM de Belém tivemos a primeira alternativa, no momento daquela fria e burocrática entrevista coletiva das ONGs. E tivemos, como contrapartida, sua formidável cara real, com os povos indígenas e o Forum PanAmazonico, com os movimentos camponeses e a Via Campesina, com os sindicatos e o Mundo do Trabalho, com os movimentos feministas e a Marcha Mundial das Mulheres, os movimentos negros, os movimentos de estudantes, os de jovens – com estes confirmando que são a grande maioria dos protagonistas do FSM.
O FSM transcorreu entre os dois, entre a riqueza, a diversidade e a liberdade dos seus espaços de debate, e as marcas das ONGS, refletidas na atomização absoluta dos temas, na inexistência de prioridades – terra, água, energia, regulação do capital financeiro, guerra e paz, papel do Estado, democratização da mídia, por exemplo. À questão: o que o FSM tem a dizer e a propor de alternativas diante da crise econômica global e diante dos epicentros de guerra – Palestina, Iraque, Afeganistão, Colômbia -, que propostas de construção de um modelo superados do neoliberalismo e de alternativas políticas e de paz para os conflitos, a resposta é um grande silêncio. Houve várias mesas sobre a crise, nem sequer articuladas entre si. As atividades, “autogestionadas”, significam que os que detêm recursos – ONGs normalmente entre eles – conseguem programar suas atividades, enquanto os movimentos sociais se vêem tolhidos de fazer na dimensão que poderiam fazê-lo, para projetar-se definitivamente como os protagonistas fundamentais do FSM.
Para os que acreditam que o fim do FSM é o intercâmbio de experiências, devem estar contentes. Para os que chegaram angustiados com a necessidade de respostas urgentes aos grandes problemas que o mundo enfrenta, a frustração, o sentimento de que a forma atual do FSM está esgotada, que se o FSM não quer se diluir na intranscendência, tem que mudar de forma e passar a direção para os movimentos sociais.
Surpreendente a quantidade e a diversidade de origem dos participantes, notáveis as participações dos movimentos indígenas e dos jovens, em particular, momento mais importante do FSM a presença dos presidentes – cujas políticas deveriam ter sido objeto de exposição e debate com os movimentos sociais de maneira muito mais ampla e profunda. Triste que todo esse caudal não fosse ouvido, nem sequer por internet, a respeito do próprio FSM, das duas formas de funcionamento, da sua continuidade – outro sintoma do envelhecimento das conduções burocráticas dadas ao FSM. No dia seguinte ao final do FSM, reuniu-se o Conselho Internacional, de maneira fria e desconectada do que foi efetivamente o FSM, em que cada um – seja desconhecida ONG ou importante movimento social – tinha direito a dois minutos para intervir.
O “Outro mundo possível” vai bem, obrigado. Enfrenta enormes desafios diante dos efeitos da crise, gestada no centro do capitalismo e para a qual se defendem bastante melhor os que participam dos processos de integração regional do que os que assinaram Tratados de Livre Comercio. Enfrentam a hegemonia do capital financeiro, a reorganização da direita na região, tendo no monopólio da mídia privada sua direção política e ideológica. Mas avança e deve-se se estender, sempre na América Latina, para El Salvado, com a provável vitória de Mauricio Funes, candidato favorito, da Frente Farabundo Marti à presidência, em 15 de março próximo.
Já não se pode dizer o mesmo do FSM, que parece girar em falso, não se colocar à altura da construção das alternativas com que se enfrentam governos latinoamericanos e da luta de outras forças para passar da resistência à disputa hegemônica. Para isso as ONGs e seus representantes tem, definitivamente, que passar a um papel menos protagônico no FSM, deixando que os movimentos sociais dêem e tônica. Que nunca mais existam conferências como aquela de Belém, que nunca mais ONGs se pronunciem em nome do FSM, que os movimentos sociais – trata-se do Forum Social Mundial – assumam a direção formal e real do FSM, para que a luta antineoliberal trilhe os caminhos da luta efetiva por “outro mundo possivel” – de que a América Latina é o berço privilegiado.
por Emir Sader, publicado originalmente em http://www.cartamaior.com.br/

Rumos do FSM

Nos inúmeros e ricos debates em torno da última edição do Fórum Social Mundial, ocorrida em Belém, agora em janeiro, uma das questões que mais se coloca é aquela que diz respeito aos rumos do FSM, mais especificamente o problema da relação do Fórum com os governos e partidos de esquerda.
Militantes esquerdistas, membros de governos progressistas (principalmente da América Latina), intelectuais e acadêmicos de várias partes do mundo – variadas são as vozes que vem se indagando sobre a necessidade de uma maior abertura do Conselho Internacional (a principal instância dirigente do FSM) para os partidos e governos.
Cobram também uma tomada de posição mais clara e comprometida do Fórum em relação aos problemas mais urgentes e complexos por que passa a humanidade: os profundos abalos sofridos pelo capitalismo, a dramática e imprevisível crise do aquecimento global, o Massacre de Gaza e a possibilidade de que os governantes dos países centrais do venham a promover uma guerra em grande escala, como solução para a séria ameaça de paralisia que ronda a engrenagem capitalista; para quem acha mirabolante ou catastrofista a possibilidade da guerra, analistas lembram que foi de fato através da 2ª Guerra Mundial que os países desenvolvidos se recuperaram da Crise de 1929.
Mas, voltando ao FSM, a grande cobrança feita aos seus dirigentes e participantes é a de que o Fórum não continue a funcionar tão somente, ou prioritariamente, como um espaço para intercâmbio de experiências, vivências e projetos entre ONGs, militantes, movimentos sociais e entidades diversas; enfim, que o Fórum supere a fase de resistência ao neoliberalismo, e participe da construção efetiva de “um outro mundo possível”, junto com os movimentos sociais e com os governos progressistas e de esquerda, principalmente os da América Latina.
Um bom e lúcido exemplo do debate em torno dos rumos do FSM está no texto do sociólogo Emir Sader, publicado originalmente no site de Carta Maior. Entre tantos e ótimos textos, DESVELAR decidiu publicar o de Emir Sader, em razão da síntese que o sociólogo faz do último encontro e das suas propostas para o futuro do Fórum. Leia o texto aqui.
De qualquer forma, com todos os problemas e impasses, é preciso celebrar o advento e a continuidade do Fórum, que há quase uma década soube agrupar e catalisar as inúmeras manifestações de resistência e enfrentamento ao modelo econômico neoliberal que, através de um capitalismo extremado, pretendia transformar o planeta, as pessoas e a própria vida em meras peças de um absurdo e abstrato jogo de poder e conquista.
Abaixo, seguem alguns links, também com ótimas análises, para quem quiser se debruçar um pouco mais nessa questão dos rumos do FSM e dos avanços na construção de “um outro mundo possível”, com alternativas inteligentes e transformadoras para o enfrentamento da profunda crise provocada pelo modelo capitalista, em todos os seus aspectos: econômico, ambiental, alimentar, energético e, por último, mas não menos importante, também nos aspectos moral, espiritual e existencial; afinal, percebemos com cada vez mais indignação, urgência e perplexidade o quanto o capitalismo - depois de ter cumprido o seu papel transformador na história - tem tornado o homem triste, pobre, hostil, amedrontado, limitado e limitador.
Assembléia das Assembléias teve pouca força aglutinadora:

05/02/2009

falas - a fascinação pelo pior

A seção “Falas” é um espaço reservado para trechos de obras em prosa, de autores consagrados ou não, publicados ou inéditos.
Inauguramos com um fragmento do livro “A fascinação pelo pior’, (publicado no Brasil pela Editora Rocco, em 2008) do jovem escritor francês Florian Zeller, nascido em 1979.

“Já tinha observado, por exemplo, que é muito raro as pessoas abandonarem essa atitude falsamente distanciada e irônica que as protege tão bem do mundo. Hoje em dia, tudo o que se expressa só pode fazê-lo através do filtro deformador da aproximação rápida e do humor - não o humor, na verdade, mas a piada, a ironia, a mera leviandade. Tudo vira pretexto para rir, mas se trata de um riso besta e grosseiro. Todos, no fundo, absolutamente distantes uns dos outros, o que significa dizer, no fim das contas, uns à custa dos outros. Alguém que pense e sinta por conta própria nunca poderia participar dessa espécie de euforia triste. É algo que sinaliza o fim da conversação entre as pessoas e, portanto, de certa forma, aponta para o reino da solidão.” (Florian Zeller, “A fascinação pelo pior”, p. 90)

partida

antes de ir
apenas mais dois pontos
:
nesse universo de pontos
meus dois olhos em prantos
prontos para a despedida
morrer é apenas
a unificação de tantos pontos
vicente filho - para paul celan

parado na multidão

poesia, se eu fosse você
um minuto que fosse
e se deparasse comigo numa esquina
daqui, de cachemira ou de candahar
eu sorriria
não para mim, nem de mim, nem de si
olharia desconfiado para o lado
desajeitado querendo olhar para trás
querendo acenar
mas seguindo - ainda bem
procurando outro bobo
em outra esquina
vicente filho

volúpia

Rasga o espaço
a flecha

Minha volúpia
percorre o artesanato
do teu corpo

Chego
à longitude
do teu sexo
e do teu recato

Tua inocência
se fecha
tardiamente

Logo
cansa-se o guerreiro
que mora
no meu sangue

Guardo o arco
e vou-me embora

Não sei até que
ponto
eu feri
o teu céu azul
simón zavalla - 'biografia circular'

ilegibilidade

ILEGIBILIDADE deste
mundo. Tudo duplo.
Os relógios poderosos
dão razão à hora físsil
roucos
Tu, encalacrado em teu âmago
te apeias de ti
para sempre.

(paul celan - 'partitura da neve', 1971)Comentários de Flávio Kothe:
Celan não viu mais serem publicados os poemas seguintes, suicidou-se no início de 1970. Eles são o fascinante registro de uma peregrinação para a morte. Parece que ele desiste de cavalgar a noite que havia se apossado dele. A duplicação do mundo na tradição metafísica (mundo terreno x mundo divino, corpo x alma, pensamento x sentimento, etc) parece ser a causa da ilegibilidade dele. O marcador do tempo já está rouco, mas o principal é que ele, Celan, é como um escorpião que já picou a si mesmo com a sua própria cauda. Os poemas de Paul Celan, publicados aqui no DESVELAR, na medida do possível virão acompanhados dos comentários feitos Flávio R. Kothe, pelo tradutor e organizador "Paul Celan, hermetismo e hermenêutica" . Optei por publicá-los, em razão de se tratar de poesia hermética e de refletir uma vivência complexa e polêmica como foi a de Celan. Oportunamente, teremos uma uma abordagem mais detalhada, tanto dos comentários quanto da peosia de Celan.

ó tu com a funda

Ó TU COM A FUNDA
ó tu com a pedra:

é noite sobre noite
eu brilho aquém de mim mesmo.
Traga-me para baixo
leve-nos a
sério
(paul celan - 'partitura da neve', 1971)


Comentários de Flávio Kothe:
À primeira vista a funda e a pedra lembram o episódio bíblico do combate entre Davi e Golias, oximoron narrativo em que o mais fraco derrota o mais forte (o que serve de base a todas as narrativas de aventuras, desenhos animados etc). Depois, vê-se que talvez aí se perca o sentido mais primário: aquele que está com afunda e a pedra é aquele que está disposto a agredir e atacar. Ao invés disso o poeta propõe o desarme, o encontro e a conversa. Como se sabe, a inveja mata: não ao invejoso, mas ao invejado. Mas ter inveja é cegueira. O próprio leitor pode ser este sujeito armado com a funda. Os poemas de Paul Celan, publicados aqui no DESVELAR, na medida do possível virão acompanhados dos comentários feitos Flávio R. Kothe, pelo tradutor e organizador "Paul Celan, hermetismo e hermenêutica" . Optei por publicá-los, em razão de se tratar de poesia hermética e de refletir uma vivência complexa e polêmica como foi a de Celan. Oportunamente, teremos uma uma abordagem mais detalhada, tanto dos comentários quanto da poesia de Celan.

Elegia 1938

Trabalhas sem alegria para um mundo caduco
onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo
praticas laboriosamente os gestos universais
sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual

Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas
e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue frio, a concepção.
À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas

Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra
e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.

Caminhas entre mortos e com eles conversas
sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear

Coração orgulhoso, tens pressa de confesssar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a Ilha de Manhattan.

Carlos Drumond de Andrade (da obra 'Sentimento do mundo', 1940)Na fala acima, há setenta anos atrás, a poesia ja apontava o empobrecimento da vida e das pessoas vivendo num modelo de civilização que já começava a dar sinais de esgotamento. Modelo baseado na conquista e na dominação do mundo, das pessoas e do próprio tempo, civilização baseada na velocidade, na pressa de atingir um horizonte nunca completamente alcançável e cada vez mais distante, e que já trazia como consequência direta para a vida o isolamento, a fragmentação, o desconhecimento e a hostilidade entre pessoas.
Na sua fala, o poeta Drummond aponta a impotência de não se conseguir “dinamitar” os erros e distorções dessa civilização equivocada, mesmo para aqueles que percebiam e sofriam o erro no corpo e na alma. Mas não deixou de ser um poema profético, se lembrarmos aqui que a a ‘Ilha de Manhattan’ foi ‘dinamitada’ duas vezes em menos de dez anos: uma pelo assombroso ataque dos terroristas da Al Qaeda, em 2001, e outra, agora, pelos próprios e privilegiados senhores da Capitalismo, que vem "dinamitando” com competência o seu símbolo maior, a Bolsa de Wall Street, sediada exatamente na Ilha de Manhattan.
Que os escombros desse erro venham logo abaixo, para que não tenhamos que presenciar tantas vezes o horror das dinamites de 2001, e de tantas outras dinamites ao redor do mundo - lembramo-nos das mais recentes, bem à frente de nossos olhos, aquelas do Massacre de Gaza.
Estejamos a postos, para pensar e forjar o novo mundo, o outro mundo possível que poderá brotar desses escombros, dessa fera agonizante que já se vai tarde, muito tarde. Que saibamos responder com coragem e invenção ao melancólico alerta bradado nas Minas Gerais através da fala do poeta Drummond.